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quarta-feira, janeiro 28, 2009  

Estranha essa estrada comprida e veloz. Sem tremas, a tranquilidade já não se encontra sem antes muitas voltas e muitos quereres e muitas coisas guardadas emboloradas cheias de mofo em volta de pequenos gestos de hipocrisia, de auto-sabotagem, de auto-idolatria disfarçada de um silêncio de não se ter o que dizer.


Todo o não dizer enfiado traquéia abaixo, sem ar, sem tubo, só apnéia, só midríase, sem grandes heroismos, sem grandes sonhos, aspirações, só muitas filhas e mulheres e pais e irmãos que se perderam uns dos outros entre esse mundo e qualquer outro que se acredita existir, mesmo que ele não exista, vidas que escorregam miséria abaixo, pertences que nunca mais serão entregues, que irão talvez encontrar outros pertences solitários e cheios de valor inestimável. A angústia de não poder dizer.


E chorar tanto depois de tanto tempo sem sentir nada e se perder no meio de si. Entre aquilo o que se é, aquilo o que se deseja ser e aquilo contra o qual se luta para não ser. Mas se é.


Tempos ingratos, sem verdade, sem brisa, sem tudo aquilo o que não volta e o que desejamos tanto (e secretamente, sempre) que voltasse, para que pudessemos cometer todos os mesmos erros, mas dessa vez sem sobrar nada por dentro, sem viés, sem nada, tudo tão escuro que arda os olhos. Suficiente pra quem vai ter sempre que conviver consigo, entre a culpa e uma noite pra sonhar com alguma coisa bonita e contínua. Da qual seja impossível recordar, mas que seja linda e em sépia.


Recuperar alguma coisa em uma galeria de obras inacabadas, todas faltando pedaços, porém cheias, porque chega, porque não se pode ter o que não foi dito, o que não ficou claro, porque nunca fica, porque tudo são pontos de vista, mesmo a ciência, mesmo a matemática, e um dia escrever uma carta. Uma pra cada um. Que já se foi e não pode mais responder. Que não soube o que aconteceu depois que abandonou tanta coisa dentro de tanta gente. Uma sopa de soldadinhos de coração, que batem em retirada, rabinho encolhido pra debaixo do cobertor de tão pouca quantidade de vida mas já tão carregada de plágios e imitações baratas de poucos centavos daquilo que um dia foi, de fato, produzido.


Querer secar um oceano de importâncias entranhadas assim, de uma vez só, com um pedaço velho de pano de chão.


Difícil viver.

Morrer, então, talvez nunca.

   posted by Fernanda at 1:35 AM (imagens)

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segunda-feira, março 19, 2007  


Canta essa música comigo


A cidade, mal dá tempo.
As pessoas, só nas conveniências.
E não é sempre assim?

Mas têm um charme singular (ambas). Um silêncio, uns cuidados meio mais ou menos, meio displicentes. Mas cuidado. Como quem cuida da calçada em frente de casa. A calçada, aliás, é irregular. Mas até isso é necessário pra beleza toda. Beleza com uma sofisticação simplória, um troço entre o cru e o artesanal, alguém explica melhor? Árvores se debruçando umas sobre as outras, de cada lado das avenidas. Bosques despretenciosos. Um museu famoso, as cores das flores, uma borboleta me seguiu de casa até o trabalho um dia desses. É como se a gente soubesse o que vai acontecer depois. Mas aí, bem na hora da nossa deixa, aparece lá no fundo uma pessoa que a gente não via há tanto tempo e improvisar vira o substrato dos dias. Que quase nunca são espetaculares. Mas são sempre cheios de coisas que não existem na vida real.

Curitiba tem um cheiro de novo. Dá vontade de usar a cidade inteira, até a última linha da última folha do caderno novo. Mas como se escreve nessa língua? Quando mal se chega, já se sabe, sem querer se chama os piás, os tigres e as outras espécies que chegam sem avisar e nos chamam pra churrascos, batatas, passeios, noitadas e outras gentilezas mil. É um sapato novo tão bonito e lustroso que se tem pena de gastar mas que, por isso mesmo, se torna um troço irresistível. Respirar fundo na floresta.

O calor dessas últimas semanas. Dizem que carioca em cidade fria só pode dar nisso. De vez em quando chove. E (nunca achei que fosse): é bom. Molha a barra da calça que acabou de voltar da lavanderia. Mas não tem importância. Tá na hora do meu ônibus mesmo. Que passa tão depressa pelo estádio: os rapazes todos empoleirados tentando conseguir um vislumbre de paixão. A paixão.
Faz falta, essa porcaria. Não faz falta, o mar. Não faz falta, a comida de casa. Não faz falta, a informalidade. Mas a ternura. Essa a gente vai pegando emprestado, meio sem graça, de gente com quem não tem intimidade. Em doses homeopáticas. Às vezes faz efeito no meio da tarde e dá um barato enorme.

Andar sem pressa até uma das praças. Esqueço. Me esqueço. Nem lembro mais. Penso em todas as pessoas, as poucas pessoas, os poucos rostos, poucos passos, tudo parece deserto. Tanta gente querendo ir pra longe quando a calma dos dias tem valor inestimável. A gente diz tanta bobagem. Quanta besteira, quanta merda um indivíduo precisa falar pra estar exatamente onde quer estar? Acho que não precisei falar muito. Faz sentido, a noite, a dor, a textura espumosa e consistente da história futura. As condutas, indefinidas. Os planos, dependentes de milhões de partículas de variedades de variáveis de fatores incosistentes. Mas o que acontece. Ah, o que acontece. Isso, sim, é que cala as interrogações. Eu não sei se foi no momento certo ou se o resto todo é que estava por demais errado. Mas encaixam, as proporções, as vontades, os cotidianos cinzas ou ensolarados, tanto faz, há sempre paz. Qual o plural de paz?

A padaria, a lavanderia, a sorveteria, o mercado, a feirinha, o restaurante a quilo, o shopping e as rotinas, os bom dia's, o papo de elevador e de táxi, tudo se estabelece, como em qualquer lugar do mundo. É fácil e completo, quando você vê já está dentro. E é por isso que eu fico repetindo insuportavelmente que nunca é tarde. Nunca é. Pra mudanças ou pra reafirmações. Vivendo e morrendo é isso o que a gente compra quando decide buscar essa coisa que não sabe o que é. Mas é um preço e muitas vezes não sobra troco e se volta pra casa sem nada, sem nada palpável, mas com tanto, tão grande que não coube em nenhum lado a não ser o de dentro.

Então dance. Mas não me chame. Porque eu danço sozinha, posso dançar na sua frente, você vai rir, eu vou fechar os olhos e rir também, mas danço só. E descobri que é assim, exatamente assim, que se descobre o mundo.
   posted by Fernanda at 6:45 PM (imagens)

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quarta-feira, janeiro 17, 2007  


Incidências


Sopra velas, veste roupas ao avesso, desaparece sem deixar rastros, esmaga 10 pessoas e depois volta tudo. sente medo de cair pra cima, fica sem nexo, sem reflexo, sem plexo. fim. não sobrou nada, nem entre os becos fugidios das lembranças. que, aliás, lembra tanto que erra (de novo) o caminho de volta pra casa. a distração é um antídoto alternativo à mediocridade. quer dizer, quando se é alérgico aos outros, os convencionais. palavra que, por si só, já resume uma certa náusea.

disperdiçar horas e dias e anos fazendo backup de uma vida inteira. e enquanto se salva (a si e aos outros), o que se vive? ao redor tudo já saiu de moda, de compasso. se alimentar de hipocrisia. mas ir dormir e sonhar com o antônimo dela. (qual é?) quem busca a verdade vai pra forca. então é melhor mesmo se acostumar com as ilusões.

quem pagou mais senta na melhor mesa e dança com a moça mais bonita da escola. é assim.

ei. te chamei baixinho. pra perguntar: qual é o nome. da palavra. que não precisa falar mas conta tudo. pra quem não precisa ouvir pra saber.
os sentidos se perderam das intenções.

você me mandou uma página rasgada:
querido diário. hoje aprendi a fingir que está tudo bem, que já até esqueci o que era e que não espero nada em troca. mas em compensação aprendi também que já esqueci mesmo o que era e que, depois que fui de bicicleta lá pra cima e vi a cidade inteira brilhando, tudo estava bem mesmo. mas quero entender melhor por que é que quando a gente se sente só -
e essa parte estava rasgada. mas acho, amor, que eu não ia poder te ajudar nessa empreitada. a solidão é uma língua a parte. e a gente sempre acaba conseguindo traduzir tudo de volta pra nossa.

a verdade é que não existe algo como a verdade. mas, a partir disso, o que perseguir?
e trôpego, sôfrego, cambalear entre a promiscuidade de ideais e o cru absoluto.

faltou luz, meu bem. fica conversando comigo até voltar. recebi correspondência: não consigo ler direito à luz de velas. ih, e se entra um bicho? melhor fechar a janela.
se lembra quando a gente escreveu que os nossos sonhos não se esquecem da gente? e de quando ficou em pé olhando o mar e esperando ele se decidir se queria ficar perto ou longe da gente? o que foi que ele escolheu? até hoje não descobri. estava chovendo uns pingos grossos que molharam o papel onde escrevemos. sobre os sonhos, sobre os sonhos. (atualmente, parece que tudo é sobre a mesma coisa.) deixamos lá, ficamos vendo eles se diluíram metade na chuva, metade no mar. a fome era muita: cantarolamos umas marchinhas de carnaval pra enganar o estômago. não foi? depois juntamos as coisas e fomos embora, a areia grudava no pé e até hoje não consegui tirar tudo o que ficou preso em mim daquele dia.

mas tudo isso, isso tudo, pra me despedir. comemora por mim, a passagem do ano. que já passou e foi tão de mansinho que a gente não notou. e, por favor, me manda perguntas e um iluminador. pra eu ver se eu aprendo, de uma vez por todas.
o que é indispensável nos dias de hoje.
e o que eu tenho que saber.
sobre esse troço volátil que é a vida.
   posted by Fernanda at 1:20 AM (imagens)

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sábado, outubro 07, 2006  

Le premier bonheur du jour


Ficou tudo tão inapropriado que uma gota quente submergiu de dentro das células de dentro dos vasos de dentro das vísceras e veio escoar-se a si própria por entre os cílios, cheios de rímel à prova d'água. A sensação de abandono era tamanha que não restou alternativa senão abandonar tudo aquilo: tomar coragem, impulso, um último gole de whisky e correr, muito veloz, até encontrar a janela aberta. Saltar sobre o parapeito e voar pra bem longe. Prometer-se descobrir quem era o último, e que cheiro, que cor teria o nada depois dele.

Tocavam umas canções tão bonitas da françoiz breut que dançar e se lembrar de tudo era inevitável, bem devagar, e sorrir tão comprido quanto a distância entre uma vontade e o prazer.

Tive um sonho: a gente chorava com medo do inseto e ele chorava com medo da gente. Só que a gente acordou e foi comer cuca de banana com suco de maracujá fresco pra se acalmar e recuperar a força pra arrastar os movéis de um canto pro outro até o fim dos tempos.

Me ajuda a lavar essa louça toda? Prometo que depois a gente fica a tarde toda molhando as plantas até dar a hora da chuva, que eu finjo não gostar. Dizem que é pra te manipular, mas você olha o meu cabelo molhado, a roupa ficando transparente, me aperta contra o seu peito e diz que é tudo charme, que eu nasci e vou morrer fazendo charme, e eu me controlo pra não achar graça, falo pra você não fugir do assunto, você não diz nada e aperta os olhos, aperta a chuva e você olha bem através dela, abre a boca não porque tem sede mas porque eu sabia e a provisão vem sempre de cima. (menos música: vem da onde, música?) eu digo vamos pra dentro porque tenho medo dos raios, e desses eu tenho, não é charme, você sorri. arranca um ramo de capim limão pra fazermos chá e me leva pra dentro, me leva pro barco de papel, porque só assim a gente consegue sair de casa no meio desse dilúvio. deixa eu pegar o guarda-chuva. esfriou, é melhor você levar teu casaco. mas agora já saímos, vamos perder a hora. (pai, quando se perde a hora, pra onde é que ela vai?) então deixa, qualquer coisa você veste o meu casaco. mas aí você é que vai ficar com frio.
não tem importância.

Dizem que nao tem solução, dizem que é assim mesmo, dizem tanta coisa que quase sempre é certa. Queria que perdessem a voz.

Tornar-se mais velho, mais chato, mais cansado. Injusto?

Mais c'est pas pour ça. Tudo o que sobra, no final (que nunca é o fim, nunca, nem quando param de bater os corações), é o som indecifrável da tevê do vizinho, um passarinho desgarrado da família alardeando o desespero, uns pingos de sereno na planta da varanda, um barulho de motor e pneus de carro voltando pra casa muito depois da hora; alguém espera, ninguém espera. Tudo escondido por trás dos tijolos que vão se empilhando em cima dos nossos sobrenomes. O que sobra são essas coisas sozinhas. Ninguém suporta mais ouvir falar: gente sozinha, ideal sozinho, dormir sozinho, falar sozinho. Até virar quase um zero mesmo (a quantidade de anulações coletivas tende ao infinito).
O vazio é um lodo espesso e intransponível que corre por dentro de encanamentos, artérias, postes, fios, veias, troncos de árvores. E vai se espalhando depressa, se estagnando por entre réplicas e tréplicas ou silêncios irreversíveis. A solidão é um troço que faz a gente abrir a geladeira sem estar com fome ou sair por aí com umas pessoas bem barulhentas pra tentar estar junto. Pra asfixiar o vácuo de dentro que não está bem lá dentro, e sim nas superfícies, nos contornos dos corpos, das coisas, nos dias nublados muito claros que contraem os olhos.

Que nem quando chegamos. Tinha tanta coisa quebrada que tivemos de enrolar as pernas e os braços em papel bolha pra não acabarmos tendo de ir ao hospital levar ponto. Num emblema, dançamos uma valsa antes de começarmos a consertar o mundo. E prometemos dançar outra depois que acabássemos. Faz uns trinta e sete anos isso e ainda não dançamos a segunda valsa.

Tanta gente se separou desde então. De outro indivíduo, de si próprio, do mundo. Tanta depressão foi escrita, fotografada e filmada. Tanto sexo foi feito pra tentar tapar um buraco que ia rasgando tudo de um pólo ao outro da terra. Tanta mentira foi contada com aquela desculpa cretina de não magoar o outro. Que por enquanto chega-se ao extremo de não saber mais. Se ganha-se mais dinheiro pra realizar uns sonhos que vão exigir que se ganhe mais dinheiro. Se queijo mussarela engorda muito. Se vale à pena se sentir tão triste por tanto tempo pra depois ficar tudo bem (Se é que vai). Se rabisca-se todas essas conclusões desamparadas e se volta-se ao zero. mas onde fica mesmo, o zero?
Já teve tanta coisa depois dele.

Regarde, les étoilles. Teve aquele beijo naquele show naquela noite que virou dia sem que a gente percebesse.

(a verdade é que daqui a uns 40 anos vamos nos lembrar desse beijo. e, do resto, quase nada.)

Podia ser tudo simples como nas ruas de cimento onde se aposta corrida de bicicleta. Joelhos ralados, mercúrio cromo, band-aid e pronto. No dia seguinte, corrida de bicicleta.

Agora é assim: nada combina com nada.
Mas não se preocupa, vou voltar lá pra te buscar. Lá onde perdi:

meu balão de papai noel pro céu
minhas lágrimas pra água da piscina
minha sandália pra correnteza do rio
meus sorrisos pra cada uma das suas gentilezas, olhares, papéis de embrulho bonitos, escolhidos com carinho.

meus caminhos
pra cada porta que se abra longe daqui.
   posted by Fernanda at 1:29 PM (imagens)

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quinta-feira, maio 18, 2006  


um dia chega


cansaço, cansaço.
porra, sabe, exaustão. de ficar rompendo com a linguagem o tempo todo. procurando a ciência nas condutas. as meias-palavras pra dar as notícias, um ritmozinho pequeno, verde, no cantinho da tela. que dê uma pontinha de esperança brilhando no olho da pessoa, acordando dentro do peito e faça a gente continuar.
acontece que às vezes a gente sai tão pó porque perdeu. nesse caso, saber perder é cominutivo. um monte de pedaços de gente que vão-se embora (em si e no choro dos outros), mas que acabam se acumulando debaixo da nossa porta, contas que a gente paga com multa, fica na fila do banco, perde um tempo enorme em silêncio e burocracias: encontrar um espaço no armário pro luxo de guardar cada obstrução.

depois escolhe a roupa com que vai sair de casa no dia seguinte. o dia em que te que agradecem alguma coisa que: imagina, não fiz mais do que minha obrigação. e é assim. continua, a vida, dizem.
próximo, caixa livre.

ficar achando tudo tão monótono: o alarme tocar todo dia na mesma hora, ter que sair cedo pra não pegar trânsito, ter que comer direito porque não dá tempo de não ter saúde. ou encontrar a saída: morrer não é o ideal. não é suficiente, morrer é banal. morrer é aquilo que a gente faz sempre que, pra não sofrer, contrata um exército de argumentos e de alegorias de auto-piedade pra poder ficar lá atrás de tudo, só ganhando dinheiro e quebrando as próprias pernas por aí. morrer é quando a gente deixa de. só que chega uma hora em que.

todas as tendinites valem à pena. sim. dizer as coisas fora do seu campo semântico. fazer festas surpresas pelo mundo. deixar-se flutuar um pouco nos equívocos dos outros. todos os cacos de vidro, toda a maresia grudada na janela, todos os insetos esmagados e os líquidos deles escorrendo na sola do sapato novo.
todos os atestados de óbitos que a gente entrega pras senhorinhas miúdas que há poucos minutos estavam ajoelhadas pedindo pelamordedeus.

(essas coisas que fazem qualquer um achar que virou um deserto.)

só que ficar sentindo o vazio duro em volta do ar vai dar muito trabalho. vai ter que colecionar figurinha que nem criança pra tentar sentir o troço todo de novo e, enfim, conseguir começar de uma vez só. senão vai ficar entrando na água aos pouquinhos, molhar só a barriga, depois os antebraços, o rosto, a nuca, e não vai nunca aprender como é arriscar um choque térmico.
ver que isso tudo é arcaico. essa sabedoria redundante, isso de ser melhor, de se tornar indispensável, de tentar dormir sem culpa. é só reprise de novela ruim.
ninguém quer.

o que se quer é além. a salvação em qualquer troço condenável, lamentável, a riqueza da escória. alguma coisa eterna que não dure mais do que cinco minutos pra não dar tempo de enjoar, de desconfiar, de desprezar. alguém inatingível na palma da mão.
e, principalmente, não absorver nada, não reter coisa alguma. ainda assim, chegar ao fim do dia em iminência de tudo. de tanta coisa que tem dentro.

uma vida que consiste em pausas pra reconsiderar as escolhas, de trás pra frente.
entre as pausas, a ação em si: morrer, né.

achar. rasgar. burlar.
(morrer é um troço solitário pra caralho.)

não fingir que nada está acontencendo.
isso, sim, isso é conseguir.
estar lá na frente pra ver. pra descobrir o que vai ter depois.

depois que não faltar mais nada.
   posted by Fernanda at 4:53 PM (imagens)

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domingo, fevereiro 19, 2006  


despertador.


levantar-se antes do sol quase sempre quer dizer que é hora de emergir. assim: tornar-se emergência de si, porque o seu amor não tem mais muito tempo, não tem mais as mãos limpas, o olho doce, as roupas leves.

Um gole enorme de ar que sufoca mais do que a falta dele e, enfim, só por isso, perceber: o mundo girou sem precisar de você dentro dele. mas sem fazer alarde, sem mandar beijos no ar, sem discutir as repercussões disso, voltar a si. cumprir promessas, chegar no horário, saber.

saber.
saber.

institucionalizar a própria auto-defesa, os medos infundados (não os são todos?), o sentir-se-ridículo-chorando-antes-de-dormir. parece difícil, requer coragem, dizer o que se sente. que diferença faz? uma luz forte que deixa a visão cheia de falhas, a verdade é isso. e é engordurada, pegajosa. tem cheiro enjoado de festa de criança pequena.

no final, as cordas arrebentam, as molduras racham, as palavras. poxa.
as palavras desaparecem. resta só um latifúndio improdutivo pra cobrir com querosene: assistir tudo queimar. dói um pouco, se for preciso, mas acaba. e depois? tornar-se nômade: abandonar; não é o que se deseja?

amanhã tudo muda, invertem-se funções, desinventam-se escolhas, enfia-se um saco pela cabeça até não haver mais oxigênio pra alimentar o fogo que a gente tem nos olhos, que se espalha pela nuca, que se transfere entre as bocas.
asfixia é hábito, anestesia é vício. e tempo é abelha: pica quando é incomodado.

esperar tanto mas tanto que, de repente,
não ter mais por quê.

estar livre.

ouvir um piano dedilhado. longe, quase nada. seguí-lo.
seguir sempre.
em frente.
   posted by Fernanda at 7:28 PM (imagens)

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terça-feira, dezembro 20, 2005  


vou.


aeroporto. samba. de orly.

vai me esperar com umas tulipas, vai.
   posted by Fernanda at 1:28 AM (imagens)

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quarta-feira, novembro 02, 2005  


Finados


Não há mais investigação alguma
a ser realizada.
   posted by Fernanda at 11:54 PM (imagens)

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sábado, outubro 22, 2005  


Obstrução


Foi a primeira vez que escreveu seu nome na neve, sentindo o dedo queimar e se dessensibilizar. Tem experimentado borboletas em seu estômago, dia sim, dia não. Estamos fora de controle, percebeu? Com todas as armas, aquele arsenal disparando qualquer alarme por onde passávamos. Estávamos anestesiados. Foi preciso um holofote pra que saíssemos daquela negação estúpida e agora dá pra enxergar tudo porque a era da hipnose, ó, acabou.

Sintetizar é fácil, detalhar é fácil. Mas e dizer a verdade? Por via das dúvidas, queria ter escrito aquilo: não te dizer o que eu penso já é pensar em dizer. (As melhores idéias que já tive foram roubadas dos outros.) Mas é a única coisa que não cabe dentro do hiato. Porque sempre acaba da mesma forma: eu choro, você diz que me avisou.

Mas não te avisaram: não se perde pessoas, o que se perde é um ritmo sincrônico. Há muitos anos ouvi: o nosso tempo já passou. Foi um prego que perfurou a minha membrana timpânica e transfixou a base do crânio. Quando puxei de volta não drenou nada. Mas dói até hoje. Faço compressa de água quente quando o dia termina; só melhora quando acordo.

Acordei quase no final do filme. Quando ela diz pra ele: "pro seu pai só existiram duas mulheres no mundo:
a sua mãe
e todas as outras."

Me deu saudades, isso.
Dos tempos em que a gente amava em silêncio, de quando a neblina era bonita e tinha cheiro de camomila.
Agora, tudo na periferia. É preciso muito barulho e esgotamento para se provar qualquer coisa. Virei a pessoa mais fotofóbica que conheço.

Decidi aderir à greve de importâncias. Só porque o luto ficou justificável, logo agora que não sei mais combinar tons de preto entre si. Fiquei deitada, recebendo desapego intravenoso. Você não quis me transfundir o seu, arranjei quem quisesse. (A verdade, que lamentável, é que sempre vou me importar.)

Sobrou uma poça. De contradição e incerteza. Quem não é?
Vamos continuar sendo orgulho e desmatéria, uma sucessão de eventos duvidosos que parecem integralmente novos. Mas são os mesmos de sempre. Fazem a gente pensar: como a nossa vida é medíocre. Articular palavras vai continuar sendo uma prática obsoleta. Conformar-se: promessas são quebradas antes de serem feitas.
Ao menos não preciso interpretar mais nada. Despertar de um sonho ruim.
Ironia: descobri como se diz "decepção" em ortografia.

Tem coisas que todo mundo sabe: ler música, tirar sangue de artéria, escolher maracujá. Tem coisas que não se ensina.

Queria estar acessível, queria ser transmutável. Mas me desmascararam.
Escorri no vão.
Entre o trem e a plataforma.
Entre o que já foi e o que nunca mais.
   posted by Fernanda at 2:52 PM (imagens)

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quinta-feira, outubro 13, 2005  


Os nervos vermelhos


As pontas aparadas, deliberadamente. É ponta ou é aresta? De cabelo eu sei que é ponta, mas e de chapéu? Cantei que se não tivesse 3, não seria o meu. Porque foi o dia mais quente da primavera.

Nós duas estalando, fritando, nos liquefazendo enquanto deslizávamos, em câmera rápida, entre os postes de luz apagada, porque já era dia. De mãos dadas, duas meninas de mãos dadas, não nos importamos com o que significa hoje em dia. Porque as nossas pupilas, ai, as nossas pupilas. Tão grandes que ninguém percebia que o olho dela era claro e o meu, não. Só me lembro que tudo foi passando, passando, o sol batendo nas janelas, as faxineiras se aventurando lá no alto pra limpar os vidros, a lagoa acordando, a hípica, tudo, mas tudo muito veloz. E depois acordei numa salinha; a enfermeira veio me chamar, disse que eu ia ter alta. Tentei perguntar a um rapaz o que é que tinha me acontecido.
Ele não sabia.

Voltei pra casa. Senti uma exaustão que não fazia sentido, e comi um pãozinho com manteiga porque já devia estar há muito tempo em jejum. Me deitei. Nem-sei-quantas horas depois o telefone me acordou. Fui me lembrando, devagarzinho, me lembrando. Quanta merda. Estava com febre, um pouco. A cabeça em combustão espontânea. Acendi uma vela pra São Tomé porque, se eu não visse, nunca ia conseguir crer.

Dizem os mais velhos que o problema do mundo é falta de fé.
Acho que o problema da fé é a falta do mundo. Inventaram esses recipientes que se fecha a vácuo (pros biscoitos não ficarem moles, sabe?) mas alguma coisa se inverteu e quem ficou duro mesmo fomos nós. Se você prestar atenção, dá pra escutar o barulho do indivíduo do lado sendo mordido, parece salgadinho de criança. Mas também, uma vez que a gente é quebrada, entra em contato com a saliva quente e também derrete. E foi por isso que te chamei naquele dia pra ver um filme do Lynch. Ver se a gente parava de ser tão rígida e se tornava à prova d'água quando chovesse, já que todos os meus guarda-chuvas entortam. Ou então somem mesmo. Teve aquele dia que os três foram ao maracanã e cada um levou o seu guarda-chuva. Era torrencial, disseram que era culpa do Nelson Rodrigues. E aí todos os 3 esqueceram seus guarda-chuvas lá, o time deve ter vencido.
Tá vendo como eu não me esqueço das histórias? Eu também amo muito vocês, sempre, pra toda a vida. Vou deixar isso escrito em algum lugar, com a minha letra, não importa se é cafona. Agradecer por todos os pedaços de bolo de laranja com chá de capim limão. Fico em carne-viva só de pensar.

Agora, e se o tempo for um fio mesmo?
Se for, não há mais solução e certamente tem alguém feliz com isso; acho que até já sei quem. Fui balançando a cabeça, olhando pro chão, pensando: estou me repetindo, estou me repetindo. Então fui encontrar com eles no restaurante mas, quando cheguei, sentei no bar. Não falei com ninguém porque queria fazer uma promessa antes.
Sentei naquele banco alto, que deixava os pés balançando, e olhei lá dentro dos líquidos de cada garrafa na prateleira. Falei: nunca mais vou topar nada. Acho que ninguém ouviu; melhor assim, sem testemunha. Pra não vir ninguém catar os meus pedaços depois, e dizer: você sempre soube que isso ia acontecer, que coisa horrível de se escutar. Mas quanto a você, tenta, sim. Nunca entendo nada do que você me escreve mesmo. E me desculpa se nunca te deixei me dar um beijo. Devia ter deixado.

O menino, tão preocupado:
- Doutora, é que minha mãe tem muito problema de nervos
- Mas ela tem algum outro problema, pressão alta, diabetes?
- Não, só de nervo mesmo.
   posted by Fernanda at 8:55 PM (imagens)

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sábado, outubro 08, 2005  


Que me adora


Eles voam como se não soubessem, falam como se não disessem. Mas (quem sou eu?) não consigo muito tempo olhar, me dá náuseas: eles entre a existência e a não; acham que sabem, pensam que entendem. Nada. Imagem é tudo, então: dá um nojo. Engraçado, sempre que saio dali bebo três litros d'água, não sei o que desidrata mais, se são as doenças ou as curas.

Nada no lugar. Não corro quando estou com pressa, tiro o relógio e tudo. Páro, troco o pé. Não volto atrás, mesmo que me arrependa. Me arrependo muito. Dizem que eu sou corajosa, dizem que eu sou medrosa, dizem que eu sou tanta coisa. Mas quando sou eu quem vai dizer, quem sou eu? Ela se pendura em mim, aquela tragédia do querer. Mas você não saberia, porque acordo, de acordo com os livros, com parestesia em todos os lugares, acordo tarde demais. Pra conseguir mudar as coisas. Não era assim, antes. Nada era. Está bom assim? Não quero ter que tomar midazolam de novo. A dor nunca mostra algo de bom.

Ainda procuro desculpas pra não escorregar. Ainda procuro formas de usar as fôrmas certas. Ainda procuro. O quê? Como antecipar. Promete que vai me trazer todas as respostas do mundo? Se não puder, não tem problema, compro pela internet mesmo, quanto será que custa?

Depois que me desfaço em disfarces, que viro uma prosopopéia dos sonhos dos outros, eles gritam: mais um, mais um. Mas de novo, não. Não vou me humilhar que nem ela fez, apesar de que tem gente que gosta. Exagerar no discurso, na bebida, na maquiagem, na vontade, até virar outra pessoa, e ir embora por uns tempos. Morrer longe, muito longe de casa. Que é quando se faz círculos em torno de si mesmo, quando se tem energia pra sugar o que estiver ao redor. Tudo muito fantástico, naturalmente. Especialmente quando tem alguém pra te despir de tudo o que ficou pra trás.

Tô morrendo de vontade. Rasgar as texturas e classificá-las em "é", "não" e "por quê". Depois dançar sobre estilhaços de vidro.
Entrar numa música que você não vai ouvir. Pra (de propósito) não me encontrar mesmo. E, quando ela terminar, mergulho dentro de uma água muito limpa, pra me ocupar espiando cavalos marinhos.

Porque é isso mesmo, ser humano: ficar enganando o vazio de dentro mesmo com gente brilhando em volta. Nunca ter a certeza de estar dentro da própria rota, da própria pele. E, às vezes, conseguir preencher tudo aquilo com a simplicidade de acreditar em alguma coisa, em alguém. Mas depois, não se iluda: volta tudo. Sempre volta. Até o dia em que acabar. Se é que acaba. E, enquanto isso, ignorar. A culpa, a culpa, a culpa. O tempo perdido. O caminho de volta. Qualquer indício de nostalgia.

Deixar a nossa vida inteirinha no shuffle.

Porque, na realidade, a gente é só aquilo (pó de estrela).
E todo mundo quer a mesma coisa.
Esquecer.
   posted by Fernanda at 6:07 PM (imagens)

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segunda-feira, outubro 03, 2005  


99%


Fiz a pergunta mais relevante:
- quando você vai na galeria onde tem a leonardo da vinci, você desce pela rampa ou pela escada?
Você abriu a boca pra dizer a primeira sílaba da resposta. Não saiu. Eu ri. (Não de você, eu nunca rio de você.) Perguntou que tipo de pergunta era aquela e passaram horas e até hoje não sei a resposta e, sabe o quê, fico preferindo deixar assim só pra poder deitar na grama, olhar os aviões sumindo e te imaginar descendo ora pela escada, ora pela rampa. Eu vou até lá pra procurar algum recado de você pra mim dentro dos livros. De vez em quando encontro. Depois procuro alguma coisa pra comer. Qualquer uma que não seja teratogênica. Existe, ainda? Perco a fome só de pensar. Mas, de qualquer jeito, quem é que ainda perde tempo se preocupando com a própria vida?

Preciso de grana. Não sei me lamentar. Desdenhar também não. Mas sei dirigir; depois me arrependo. Quase morri 8 vezes. Quando chego faço carinho na patinha dela. Que fica nervosa e vai embora. Mas de beijo na orelha ela gosta, quem não gosta? Alguém me ensina a puxar o saco dos outros. Vamos fazer um pacto pra quando formos bem velhinhas: eu vou no seu enterro e você vai no meu. Assim, ninguém fica sozinha. E ninguém pode se esquecer de viver.
Pergunta qual é o ônibus que se pega pra áfrica. Enquanto isso, tem gente assinando documentos por mim, usando o meu dinheiro pra se divertir, me atribuindo a autoria de frases que eu não poderia falar. Porque não tenho conhecimento de causa. Porque estou desmanchando em ausências. Buscando pessoas imperfuráveis, onde posso ser solvente e soluto, alternadamente. Pra residir em um, somente um lugar.
Um dia ainda consigo, você vai ver. E não vai mais sobrar nenhum grão de remorso. Aí, sim, vão sentir saudades.

Meu amor, na encruzilhada, o que é que você vai fazer? É uma das perguntas proibidas. Um dia mando a lista, em ordem decrescente: Il est interdit d'interdire. Não se assusta: vão chegar todas em fotografias. Em envelopes de camurça. Na realidade é fácil descobrir, ó: o que é mais importante pra você?

(Mas nem tudo se simplifica dessa forma, eu sei.) As ruas todas precisam umas das outras: a igreja em uma se sustenta com o dízimo dos habitantes da outra, que levam os filhos à escola em uma terceira e que, por sua vez, recebe a merenda de uma empresa na quarta. Há também um beco. E se a gente fosse por ele? Escolhesse a saída que não existe. Como que fica a nossa história? Quem vai contar?

Então, se uma coisa sempre precisa de outra, mesmo que sejam incompatíveis (e na maioria das vezes são), ninguém está realizado com nada. Só as pessoas que têm sorte, mas estas não contam, não há relação de causa e efeito. Que nem quando a gente botava sempre a mesma roupa pros jogos da copa, afinal aquela roupa estava dando sorte. E, se a gente perdesse, era porque não-era-pra-ser. E, se não se está contente, não vai dar nunca pra responder a clarice. Que, quando era pequenina, perguntou: "depois que se é feliz, o que acontece?"

Mas pensa pelo lado bom: se você memoriza tudo só pra poder contar pra ele e se ele não existe mais, vai sobrar muito espaço na sua cabeça. Mais um artifício, viu só? Talvez um dia a gente descubra como se faz pra transformar todos eles em fogos bem bonitos.

Nenhuma dessas conclusões revela ou releva um achado, não é? Então pergunta pra doutora: quanto tempo vai demorar pra cicatrizar.

Termina logo, abruptamente, nada de quadro incidioso ou crônico. Um rompante.
Mas não é sobre amor. Nem tudo é.
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quinta-feira, setembro 22, 2005  


Anjo da guarda



Todo mundo esperando uma segunda chance pra refazer as besteiras ou então uma distração do sabor amargo que foi se depositando aos poucos, enquanto se despia muito vagarosamente e alteradamente. Pra sentir alguma outra coisa que não seja isso.

Nos últimos resíduos, a palavra que pinga sobre as nossas cabeças, e que a gente evita pronunciar pra não admitir que tem: esperança. De um dia inventarem um lugar pra onde não se leva escombros. Pra onde a viagem não tem intercorrência, o percurso macio, sem turbulência, porque a gente voa acima de tudo. O que é uma armadilha, então, cuidado: colocar-se acima de tudo. Tem tanta gente morrendo disso.

Um mosaico de coincidências. Todos os órgãos, o céu, o jornal de ontem, a música bem na hora, as crianças com mais medo do que dor. Tudo fatalidade. Uma hora você escolhe o seu papel, porque a não-ficção é um risco doido, e foi proibida, parece que agora todo mundo tem que escolher o que vai ser. Como desgastar o brilho todo de uma vez só, pra depois lustrar novamente e telefonar pra mãe e choramingar - vem me buscar.

Tem faltado um dos sete elementos que não se compra e também não se desenvolve. Cadência. A única coisa não-linear sem prazo de validade é filme. O resto: primeiro é mágica, depois é absurdo. Os direitos ficam todos seqüestrados por um tempo que - das duas uma: ou não chega, ou não passa. O difícil é não perder o dos outros. Responsabilidade grande: guardar alguma coisa que não é sua. Tempo nasceu assim mesmo, sem sinonímia, recurso não-renovável. E, mesmo assim, a gente teima em empurrar ele de volta, pra dentro do tubo, não é? Pensamos assim: um dia ele cansa e vai ter de sobra. Pras segundas chances, pros primeiros erros, a coleção de arrependimentos. Que todo mundo jura que não tem. Tenho uma pergunta: por quanto tempo o indivíduo consegue ficar fraco sem perder a vontade de acordar no dia seguinte?

E qual é a função primordial da menina bem no meio?
O nome dela é tão lindo que não consigo parar de falar. Fico repetindo, repetindo, pra ver se fica inscrito em mim, pra eu poder tomar coragem e ir até a sua casa lhe agradecer. Levo aquele cachecol que gastei uma noite inteira pra fazer, todo em ponto de cruz. Mas de repente melhor seria esperar até o próximo ano, o calor está chegando mesmo. Vê, a gente arranja desculpa pra tudo.

Eu sei muito bem o que aconteceu: no dia em que eles se conheceram ele foi defendê-la mas ela estava acostumada a ser sempre forte, sozinha, nem percebeu, nem mesmo no final de tudo, quando se despediram, e ele sorriu. Antes disso, pela primeira vez em doze horas, sentou-se. Estavam a sós: ela apoiou os cotovelos da mesa e segurou a cabeça com as mãos, traduzindo a pessoa em estafa crua. Ele perguntou: te consome muito, né? Ela não respondeu, virou a cabeça devagar em direção a ele. Parecia cansado. Era mais jovem, mas dava a impressão de estar ali para protegê-la. Pois ninguém mais se deu ao trabalho. Mas, não, ela não percebeu. Olhou-o mais uma vez. Ele parecia gostar de jogar bola: cabeça de área, ela apostou. Deve ter um ciúme danado da irmã, se é que ele tem uma. Deve ser feliz.

No meio disso tudo a avó diz: menina, vai dar uma volta, vai brincar, vai descobrir o mundo. Só que cada choro tem uma causa, ó: um dia foi porque a goiabada acabou, outro dia foi porque o gato sumiu, no outro foi porque o bicho picou e no outro foi só manha mesmo.

No meio disso tudo, o pai diz: menina, pensa bem, tem certeza de que é isso que você quer pra sua vida? Só que acabou escrevendo as cartas certas pras pessoas erradas, e não teve jeito, acabou entrando no antibiótico.

É só dentro do carro, muito tarde, numa avenida estranhamente deserta. Só aí que a gente se esquece das peças que faltaram. Que a gente descobre. Porque resolveu fazer tudo aquilo. E porque amanhã vai fazer de novo. E de novo.

E de novo.
   posted by Fernanda at 1:25 PM (imagens)

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quinta-feira, setembro 15, 2005  


tarde, frio


Se não entenderem porque eu fiquei obnubilado quando te vi chegando sozinha daquele jeito não importa. Pedi uma caipirinha, mas não te deixei ver, ia parecer que eu era covarde.

Eu sou um covarde.
E depois cheguei pertinho pra tentar me lembrar de todos os perfumes misturados que você renegava. Que eu distingüía, um por um, bem perto de onde as suas artérias pulsavam, e o que sobrava era algo cítrico-silvestre-com-amêndoa-e-hortelã. Em baixo de tudo a sua densidade que, na realidade, era tão delgada que arrebentava a cada cinco minutos e, com o tempo, foi ficando transparente, e dava pra ver por baixo de você, o que por muitos meses deixou as pessoas muito nervosas. Mas depois muito encantadas. Querendo mexer no seu cabelo.

Se eu fizesse uma reestruturação na minha agenda de telefones, se eu conseguisse restaurar aquela foto da sua avó pequena, se eu editasse aquele vídeo que eu filmei de você arrumando o seu armário e tirando lá de dentro as inutilidades mais absurdas. E te entregasse isso tudo. Será que você se lembrava de quem eu fui?
De quem a gente foi? Tá ficando tarde, sabe. Não vai dar tempo.

Olhei pela janela: o professor estava falando sobre a queda dos juros, e você não se interessava, tentava, mas não conseguia, ficava descascando o esmalte da unha. Naquela hora você quase me viu e eu pensei que talvez fosse mesmo melhor não porque eu não tinha certeza se ia continuar querendo te compreender tudo de novo, desde o princípio. Porque nunca ia conseguir terminar e olhar e dizer: eu te entendo. Cheguei até a correr à farmácia e comprar acetona mas, quando voltei, você já tinha tirado tudo.
A roupa. E entrado na piscina, mesmo com chuva, mesmo com medo de raio. Ninguém viu, só eu. Você lá, dentro d'água, debruçada na borda e falando um monte de coisas bem baixinho. Com uma das mãos fazia conchinhas, enchia de água e molhava a beirada: não sei se tentando esvaziar a piscina mais depressa do que a chuva enchia ou se tentando deixar o lado de fora mais molhado do que a chuva deixava. Vai ver que queria me falar de novo: ao invés de pôr a água pra fora, quando cheguei, pus pra dentro. não deixei cair uma gota, nenhuma, você ia ter ficado orgulhoso. Mas nem assim fazia sentido.

Quis dizer que tinha ficado contente ao saber que você ia voltar a estudar as profecias do seu trajeto e desemaranhar o barbante de um lugar. O mesmo lugar, pro qual você sempre voltava quando acabava o combustível. Você me dizia assim: só quero ver o mar.

Depois pôs a roupa alinhada do trabalho e avisou que não agüentava mais ficar dentro de casa, que ia assistir um filme do Bergman. Não quis que ninguém fosse junto. Quando voltou, tinha muito mais gente, só que você, não. Só luz. E pele e gestos e opiniões e jogo sem jogar. Eu nunca sabia definir o seu charme, e eu detestava essa palavra, por isso não dizia nunca. Não ter muita idade não significa muita coisa, afinal. Boa nem ruim.

Percebi que não tinha mais nada meu, nem retrato, nem nada. Fiquei com o orgulho ferido, quis procurar algum calor na moça bonita que tinha se mostrado interessada outro dia. Mas as coisas não são assim.

Eu sempre vou misturar os pronomes dos teus e dos seus e dos meus. Você nunca vai se lembrar de nada. Vou ficar olhando pras minhas mãos, te espiando atrás das esquinas que você dobra, nos cruzamentos que você não fecha. Me perguntando, todo o tempo, o que eu teria feito, outrora.
Com o nosso. Que era tão nosso.
   posted by Fernanda at 8:43 PM (imagens)

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domingo, setembro 11, 2005  


De ótica


Um dia a menina começou a anotar os números e as quantidades e os pesos e os metros de todos os passos apartamentos dando festas janelinhas acesas às 3 da manhã gomo-de-tartaruga ônibus pra surfista semente na fatia de melancia. e passou anos achando aquilo a coisa mais importante da vida, difundiu entre os amigos, que também saíam por aí contando tudo, compulsivamente, pra qualquer um. todos os segredos e as bebedeiras. depois cansou e inventou que as formas e maneiras eram mais relevantes. passou a adjetivar as pessoas os momentos as músicas. tudo muito claro amargo pesado irresponsável libidinoso devastado amarelo terúrico tenro esquematizado.

depois de uns anos se esqueceu.

hoje coleciona os mais diferentes barulho de risos.

amanhã, quem sabe.
   posted by Fernanda at 7:27 PM (imagens)

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terça-feira, setembro 06, 2005  


A solução:


Mandar por email a discografia inteira dos seus insucessos que por pouco não se desintegraram entre os outros, nas estantes dos tempos de vacas gordas em que a gente ganhava ouro branco sem motivo. Todo mundo ficou tão triste de uma hora pra outro que um dia desses parece até que passou pra mim. Fiquei olhando pra baixo um tempão e aproveitei que ele foi comprar água pra chorar um bocado. Depois tomei um banho bem frio e lavei o cabelo com xampu de camomila. Pra escapar pra dentro da cabeça, pelos poros, pra acalmar os curtos-circuitos. Ei, descobri com quantas canoas se faz um pau. Que eu sou a sua vitrine pra escória que está se arrastando e deixando pingar imundice bem no espaço entre as pedras portuguesas. O seu laboratório pra quando você quer tirar retrato em macro das micro-mazelas do nosso povo.

Eu, que me arrumei toda. A base era pra homogeneizar, um trator que sedimenta tudo até desconstruir os quebra-molas da nossa superfície; o rímel que vai se aderindo aos cílios, da raíz às pontas, até não sobrar nada que pudesse interferir no olhar da mulher que eu não sou, nunca fui. Os pós em cores propositadamente escolhidas, combinadas, colocadas sem colóquio nenhum, mas tudo muito mensurado e devagar e cheio de sentimentalismo entrelaçado, que nem na música clássica, nos concertos do chopin (os melhores pra se maquiar). A boca tão desenhada que quase nunca precisa de mais alguma coisa. A não ser fugir dos seus beijos. O sapato que você gostava. Esperei, esperei. Tomei um comprimido de metoclopramida pra ver se eu melhorava. Fiquei reciclando travessão e depois tentei disdizer tudo. Desde o começo. Pra, então, descobrir: quando é que vai começar a vida de verdade. Prometer as coisas dá um trabalho enorme.
Chegou uma hora que bastou. Ninguém espera pra sempre.

Existe todo um vocabulário que eu não conheço. Mas, em compensação, os transeuntes passam creptando e eu percebo. Têm cólica biliar e eu percebo. Descompensam do diabetes e eu, adivinha. Que nem quando você me ligou lá do outro lado pra contar que o seu pulmão colabou, e ficou pequenininho, espremido entre a maca dos bombeiros e o seu baço. Eu não me contive e ri no meio da história porque você nem sabe aonde fica o baço. Você ficou com a maior vergonha do mundo e me perguntou: - afinal, pra que serve o baço?
Interrompi a explicação pela metade e me lembrei de um negócio que tinha tudo a ver:
- Formato de olho deve ser que nem impressão digital...

Mas dia desses te dou o mapa de você por dentro, tá bom? Me lembra. De tirar a água do fogo antes que haja uma explosão que transforme toda a casa numa telona branca. Eu vou ficar sozinha, acordar com a música da tevê ligada no canal de desenho animado. E depois de cuidar de tanta gente que sai de dentro de tanta ambulância, da gente quem é que vai?
Fiquei cansada de juntar dinheiro. Vou comprar aquele sofá feio mesmo.

Mas o formato sempre depende de quem molda, entende? Por isso que tá tão disforme essa massa te engasgando aí. Por isso que não existe plural pra "contorno de olho". E, finalmente, por que é que as coisas impalpáveis são as que mais esmagam?

Espero que ele não fique bravo: joguei fora a flor. Estava linda. Mas não ia ficar olhando pra ela lembrando que ele tinha ido embora. E que não ia voltar nunca mais. Mostro a minha cicatriz nova, no ombro, e ele dá um beijo bem em cima dela. Tomei três pontos, eu digo. E a gente vai até o último andar, de escada rolante, enquanto fico me lembrando de quando eu ia à praia do leblon antes de ela ser poluída.

Daqui a pouco vou ser bem clara em relação a tudo o que em sinto em relação a todas as pessoas com quem já me relacionei.

(
só não sei se eles vão saber. vão querer. vão viver pra ver
.)
   posted by Fernanda at 12:22 AM (imagens)

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quinta-feira, agosto 25, 2005  


Ampulheta. Ou:
O dia em que eu cantar Chico Buarque pra não te deixar dormir



Do começo até o fim da consulta, eu e você, a gente fica só jogando sinuca com os olhos. Sempre nunca falar nada: deve ter aprendido isso em algum filme japonês. Ou seja qual for a nacionalidade daquele cinema em que uns sujeitos ficam sentados durante uma hora e meia pra tentar encontrar beleza em overdoses e pra ouvir silêncio. Mentira, porque sempre tem alguém se mexendo na poltrona, alguém com pigarro de gripe ou de cigarro, alguém comendo. Silêncio mesmo não existe. Ou pelo menos assim eu acreditava - até eu começar a te freqüentar. Você é essa grande quadra polivalente deserta num campus universitário longínquo, aonde eu vou quando a noite vem, pra tentar dar uns murros em absolutamente nada e escoar os líquidos todos que estão aqui dentro de mim, se estagnando à toa. Então, se eu quiser, me deixa chorar, tá bom? Não diz que é anti-ético.

Teve um dia que tava chovendo e você deixou o agasalho pendurado atrás da cadeira. Quando você foi ao banheiro juntei tudo o que você já tinha desembolsado, todos os seus cheques, todas as suas notas, moedas e coloquei no bolso do seu casaco. Fiquei esperando pra ver o que acontecia. Mas passaram cinco ou seis semanas e você continuou vindo normalmente, sem dizer nada. Nem assim, nem se eu admitir que não fiz nada por você, que é assim que as coisas são mesmo mas que, não sei, tem algum instrumento desafinado. E mesmo que interrompa o concerto mil vezes e mande todo mundo afinar, um por um, nunca descubro qual é. Pronto, foi por isso que te devolvi o dinheiro. Você chegou a guardar de novo ou deixou a máquina-de-lavar triturar tudo e sentou no chão pra poder assistir pela janelinha?

Todo mundo acha que está violando correspondência quando falo dos nossos encontros. Então não conto mais nada a ninguém. Agora eles pensam que tenho um grande segredo. E você pensa que eu tenho um grande segredo. E, olha, eu não queria dizer pra não dar o braço a torcer, mas é verdade, eu tenho mesmo. Mas não é nada que eu não tenha te confessado, quando estava na vez do meu olho jogar boliche com o teu.

Mas eis que, nos últimos sete minutos do último encontro, você resolve dizer. E me conta tudo sobre as tuas vidas passadas. Engraçado, né, que em todas elas você trabalhava com algodão e terminava morrendo de bissinose. Eu disse que pelo menos não era câncer, e te perguntei se você sabia que churrasco dava câncer. E você não ficou tão surpreso e disse que fazia sentido porque o carvão é altamente cancerígeno. Mas aí soou aquela campainha que você conhece: terminou o encontro. Não é como se a gente estivesse fazendo algum progresso, de qualquer forma.

Às vezes, muito ocasionalmente, a gente engana o tempo e volta a ser o que era antigamente: sem precisar de hora marcada, sem fazer barulho pra tapar os buracos sem diálogo. Sem essa dor que a gente não consegue apontar - é aqui que dói, ó. Mas é tão raro que sempre que acontece eu faço questão de olhar pra cima. Pra constatar que existe um teto e não vai desabar um temporal, inundando tudo, sobre mim e sobre você. Que me olha como se estivesse me preparando uma festa surpresa e me pergunta coisas muito complicadas que eu descubro serem, na verdade, muito fáceis de se responder. A gente fala de umas coisas tão bonitas sem precisar pensar, e ninguém sente medo de nada. Só que isso dura, no máximo dos máximos, quarenta minutos. Depois parece que um esquece como se fala a língua do outro. De novo. Aliás, pra que serve mesmo a linguagem? Nem lembro mais.

É aqui que você pensa que me investiga, não é? Acha que eu não sei, que eu não percebi até hoje. De repente, um dia, eu apago tudo isso. Só pra ver se você fala, se você ouve, se você deixa.

Mas, não. Esquece toda essa prova, mais uma, que você tem contra mim. Sabia que eu tenho estudado geometria todo dia antes de dormir? Pra ver se um dia eu ganho a aposta. Aquela que a gente fez desde que começou a soltar pipa com os olhos. Foi pipa, boliche ou sinuca? Sempre me esqueço.

Agora. Que é intervalo pra gente tomar uma coca posso até dizer quem eu sou. Pouco me importa se você quer que eu diga, se não quer, foda-se. Sabe essa vontade que você sente? Essa de entrar lá dentro mesmo, com pleonasmo e tudo, com roupa e tudo, dentro de tudo, só pra olhar, só pra sentir? Então. É isso que eu sou. Essa sua vontade. Que (não importa onde você esteja. com quem você durma. todas as verdades que você não diz.) nunca vai te deixar em paz. Nem quando você pensar que os estudantes foram pra casa pra passar as férias e que você finalmente pode dormir. Porque eu vou lá. Saltar e te iluminar.
Quando a noite vier.
   posted by Fernanda at 6:40 PM (imagens)

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quinta-feira, agosto 18, 2005  


Sobre não dar as costas a quem não tem culpa


Enquanto ficou ali parada, visivelmente esperando acabar a música, agiu como se estivesse pensando que teria que ser perfeito. Tem umas pessoas assim: obcecadas com tudo. Dizem que ela é uma histérica mas, coitada, os perfeccionistas sofrem um bocado. Os hipócritas são mais felizes.

A vontade era me virar pra trás e dizer só assim: você escreve pra caralho. Mas nunca seria suficiente, não é? Todos os elogios do mundo. Deixa pra lá.

Mas não adianta, você nunca vai desvendar aquelas pessoas que falam as coisas pela metade, que choram de rir, que te abraçam como se fosse despedida. Que se expressam mais ainda quando ficam quietas. Já eu, não. Porque já contei tanto segredo, mas tanto, que virei uma mentirosa porque tive que começar a inventar mistério. Mas eu juro que não foi culpa minha, que foram as circunstâncias, que eu nem sei bem como tudo começou. Um dia ainda vou ser presa por isso: porte ilegal de histórias.

Por exemplo, café eu não gosto, aliás eu detesto; mas quero. Muito. Pra tirar esse cheiro. De podre com iodo com urina com sangue com necrose. Que vem de gente que eu amo, que eu toco, que eu não conheco, nunca tinha visto, mas que eu seguro na mão e que segura de volta com força e chora e sangra e me pede coisas que eu não posso fazer não posso dar não posso esboçar nenhuma reação nem dar informações que não sejam vagas e inconclusivas como pedir calma pedir paciência dizer que não vai doer, eles me pedem e eu peço a eles, assim funciona o comércio entre os que só querem sobreviver e os que se sentem responsáveis por tudo o que acontece e o que não. Mas que desgraça, sabe. Isso da gente ficar se enganando desse jeito.

Nos encontramos. Me contou dos seus amores, rumores, tumores. Tudo tão dilacerante e eu só pensando como ela ficava linda até quando chorava. A gente fumou um troço que primeiro deu vontade de rir, depois sono e depois deu fome. Falei um monte de besteira. Mas sabe, lindinha, agora não adianta mais. Menina linda. Da próxima vez você nem vai sentir. Parece que essa anestesia é diferente das outras: ela se acumula. Que nem vacina, já tomou?, você fica imunizada contra os agentes agressores. Porque foi isso o que fizeram: violência. Agora deixa sair o pus todo de dentro que depois melhora. Vou te mandar um potinho de doce de banana pra você não se esquecer daquilo que a gente conversou sobre a vida. Tá bem?

Depois vem o que eu fiz no dia seguinte.
Todo mundo me avisou, preocupado: não faz.
Mas fiz. E agora já era.

Quando cheguei você estava com uma concentração tão grande que até dei meia-volta pra não estragar. Meu coração passou pro lado direito, sem mais nem menos. E dei meia volta de novo.
Entrei de mansinho, sem fazer barulho, e falei: tá bonito aqui...
   posted by Fernanda at 4:48 PM (imagens)

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terça-feira, agosto 02, 2005  


As Coisas que vão Pro Céu


- É verdade, não existem pessoas melhores.

Foi a última frase que eu me lembro de ter ouvido. Porque logo depois você apareceu de novo, me puxando pela mão, com pressa, vestindo um sorriso levado que eu não via desde. A gente saiu dali: as conversas muito convenientes, as pessoas muito chatas, a comida muito sem sal. E saímos mundo abaixo, escrevendo "lave-me" até nos táxis, até nos ônibus, e pegamos as bicicletas e fomos cobrar pedágio grátis dos carros que entravam: escrevíamos no papelzinho os signos das pessoas, o nome de seus animais de estimação e o lugar mais bonito que elas tinham ido. Às vezes a gente pedia pra soletrarem alguma coisa. Por exemplo, Liechtenstein, que não tem exército até hoje. Devolvíamos pros motoristas e eles acabavam achando engraçada a nossa seriedade. Um segredo: acho que eles guardam até hoje aquele recibo.

Chegaram flores: é pra mim? Não podem, não tenho mais endereço. Não queria mesmo. Você riu com um deboche charmoso quando eu falei assim, desdenhando; sem querer comprar. Mas comprando.

Você era o rapaz mais lindo do quarteirão e um dia eu comecei a sonhar que eu tinha que ficar nas pontinhas dos pés pra olhar através da sua janela, espiar o seu banho, como o seu shampoo fazia espuma e como você inclinava a cabeça pra trás e fechava os olhos e quase sorria, quase morria, quase me via no seu espelho. Saía do seu assovio um blues antigo, que na época eu nem conhecia, achava que só existia ali, na sua boca, na minha pálpebra cerrada. Depois você começou a me sussurrar umas coisas quando eu passava. Que eu tinha os cílios mais bonitos que você tinha visto, e que você queria um beijo meu de borboleta. Mas aí você namorava uma loira, depois uma morena, depois uma loira de novo. Será que era de propósito? Aquele olho comprido esticado pra mim. Que não entendia nada. Eu ficava só descendo as escadas da frente do meu prédio como se fosse amarelinha. Com o meu casaco de ovelhinha, pensando como será que era ser uma arraia.

Faz tanto tempo isso.

Veio o telefone sem fio, veio o dvd, vieram os cinemas com muitas salas, chegaram os extraterrestres e difundiram a telepatia. Vimos tudo abraçados, olhando pela tv. E pela nossa janela, que todo dia dava pra lua. Você sempre me tratando diferente de todas as loiras, de todas as morenas, eu era uma água cristalina que você encontrava depois de tantas horas debaixo do sol. E antes de dormir a gente ia roubar goiaba do vizinho.

Só que você começou a ir embora e eu fui ficando cinza.

E foi só quando ele disse:
- Você é todo o meu amor.
Que consegui parar de tremer.
Lembrei de quando a gente cantava a música do djavan como se fosse uma piada com o nome de uma cachoeira.

Fiquei sentida: não percebeu que eu não tenho mais medo de dirigir na avenida brasil. A gente devia beber guaraná pra comemorar porque álcool eu não posso mais. Por causa do fígado e das enzimas que eu não tenho; acho que nasci sem.

Existe um truque pra não chorar nem um tiquinho.
Ficar ali fazendo a maior força pra fingir que tudo aquilo é só um filme, e quase ver o diretor orientando a gente, você passando o texto, o moço da câmera ajeitando um ou outro detalhe técnico. Aquele montão de figurante sendo maquiado tantas vezes que já nem sabiam com que cor eles tinham nascido. Tudo muito subliminar e fictício, a dois metros de acontecer.
É quase choro. Mas não é.
E nem vai ser.

É tudo filme.
   posted by Fernanda at 8:34 PM (imagens)

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sábado, julho 23, 2005  


As coisas que vêm do céu


Tem uns meteoritos caindo ali no vidro do carro estacionado. Parece que, sempre que o automóvel dorme por mais de uma semana, fica mesmo em coma. Nem de mim ele se lembra, e quem engasga, olha, acaba sendo eu. Que sempre termino sendo só as coisas que eu nunca fui mesmo. Quanta incerteza. Enquanto isso se tenta convencer os humanos de que ainda vale à pena do outro lado. Onde os dias não são um depois do outro, naquela seqüência sempre certa, sempre igual. Todo mundo fica rezando muito forte pra ser esquecido aqui embaixo. Engraçado como a gente ainda gosta da vida.

No final do dia, um segundo antes de me desligar, naquele momento límpido onde todo mundo é sincero consigo, a violação das prerrogativas pra continuar passa de crime a oferenda. E é aí que eu fico ouvindo barulho de copo brindando, gente rindo e reflexo de fogo de artifício na água. (Teve uma vez que tomei banho naquilo, foi quando descobri que a pele era um troço impermeável, e fiquei com raiva, fiquei esfregando pra ver se entrava, pra ver se sentia, pra ver se queimava.) Mas o meu cachorro sente medo, então eu prefiro não, porque aprendi de verdade, dessa vez: a gente tem que respeitar os medos dos outros.

(Um dia joguei uma moedinha numa fonte e pedi pra ser corajosa.)

Agora, delírio é uma coisa e alucinação é outra. Então por que é que eu arranjei esse plano de sair de você? Queria que não fosse dessa forma: uma meia-palavra valendo mais que uma meia década delas. A gente fica - que nem na música: feito poeira se escondendo pelos cantos. É triste mas pelo menos a gente tem tudo sendo pó.

Talvez eu espalhe uns cartazes pela cidade pra ver se alguém encontrou os meus amigos.
De toda forma, duvido que devolvam: ou foi roubo, ou perdi.
   posted by Fernanda at 6:54 PM (imagens)

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quarta-feira, julho 06, 2005  


Não tem nem palavra pra


Você falou que namorava o jimmy page há 30 anos atrás e eu, olha só isso, acreditei. Pus uma flor bem amarela atrás da sua orelha, e ela não ficava, se lembra? As coisas evoluíram, passaram a ser menos definitivas. Mas e daí?

Deve ter alguém te falando grosserias durante o dia pra você nem ter querido falar sobre nada no jantar de ontem. Por que é que você nunca me conta essas coisas? As que verdadeiramente te rasgam. Você diz que eu sei como se trata mulher, como se entende mulher. Mas, olha, eu não sei, não. Não entendo essa dor contínua que vocês sentem. E nem essa coisa de que a gente tem que adivinhar tudo. Nada é transcendental como no filme. Mas eu não vou te falar isso; senão, perde. Eu, você, o momento vai embora. Aliás, o nosso passou já. Aposto que você nem sentiu. Onde será que eu vou morrer?

Você sempre tem as histórias mais bonitas. Um dia faço uma exposição com todos os teus sorrisos, a maioria inclassificável. Só que aí eu me lembro, porra!, que você não existe. Que um dia me prometeu que apareceria de vestido verde e salto baixo naquele lugar estranho onde eu gosto de comer cheesecake de vez em quando. Mas até hoje, nada. Eu peço a conta cabisbaixo, vou embora sozinho, me sentindo tão estúpido.

Misturo umas bebidas e uns remédios e escrevo trocando as pernas, ando confundindo os pronomes. Me lembro vagamente de quando tudo era tão óbvio e eu te respirava enquanto você dormia. À minha frente, as coisas agora são duplicadas e dançam. Merda, o quarto começou a rodar e todo mundo sabe o que isso significa.

É provável que eu não esteja lá pra assistir o teu declínio, viu, linda. Mas porque eu não ia deixar você cair. Nunca.

Já quanto a mim.
   posted by Fernanda at 12:33 AM (imagens)

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quinta-feira, junho 23, 2005  


Os Efeitos Colaterais

Se a gente continuar repetindo as mesmas frases, se continuar fingindo os mesmos erros, vai tudo terminar encalhado no final de uma arrebentação comprida e gelada. É traiçoeira essa ausência de palavra depois de tudo ter acontecido. Um campo minado de possíveis caminhos, todos com o mesmo fim. Às vezes parece que eu enxergo lá longe, tão longe que fica tudo branco em volta, como se fosse um pântano com neblina, não sei bem, e não posso explicar como é porque senão começam a definhar as nossas respostas, elas fazem uma fila e vão cada uma na sua vez, até sobrar uma que não faça sentido algum sem as outras por perto.

Uns goles de vinho talvez resolvam. Podem bastar pra dizimar o povo heróico que ficou aqui depois de tanta derrota, tantas baixas. As moças todas enviuvaram; mas disseram que álcool mata esse bichos - não custa tentar.

Queria pedir: me desculpa aí a falta de jeito, a falta de graça, a falta de vergonha pra pedir desculpas. É que aquele dia, depois que a gente se sentou no banco velho, caindo aos pedaços, e viu o litoral do país inteiro dali e ficou conversando sobre política, eu cheguei em casa e resolvi largar tudo pra ficar com você. Mas depois mudei de idéia e voltei pro trabalho, onde eu não consegui terminar nada porque ficava matutando as piadinhas que tinha feito de mim. Porque, no fundo, eu detesto você. Detesto o fato de você existir e ser tão palpável. Foi por isso que te mandei tudo de volta e falei pra você ir embora, voltar pra sua casa e esquecer a cor que tem o meu olho quando faz sol. Mas mesmo assim queria que você me perdoasse: ser tão de-vidro-fosco.

As pequeníssimas gentilezas de mão beijada são o que faz os dias serem mais sobrevivíveis. O resto fica como já estava: até onde a passividade vai?

Não querer mudar os móveis de lugar: comodismo é mesmo um vírus letal.

Por que é que eu tenho a sensação que toda vez que ele me dirigir a palavra eu vou me sentir no direito de mudar tudo?
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sexta-feira, junho 17, 2005  


Este texto não existe


Não é que esteja saindo da órbita, deixando pedaços de mim aleatoriamente no único lugar que freqüento, me justificando pra qualquer um por (cretinamente) tudo, precisando desesperadamente daquela capa de aço que não chega. Não é isso, nada disso. É que parece que ninguém mais enxerga além daquilo que a gente antigamente lia nas enciclopédias. Vai lá procurar as coisas que eu vejo. E depois vai ver as coisas que eu sinto. Depois tenta explicar tudo, tudo, tudo. Direitinho, sem gaguejar, sem parar pra tomar um arzinho ou pra tentar segurar a lágrima dentro da garganta. Sem repetir verbetes inócuos como tudo, sem e coisa. Tudo sem coisa. As coisas sem tudo o que a gente sonhou que elas seriam: isso é que é solidão. Depois ter doença que não tem cura, quase todo dia, sempre antes de dormir. (Eu já parei de apagar a luz, de tanto medo.) Ela disse: esse caranguejo regendo o teu ano te esculhambou. Agora paga.

Desviar a atenção da tal da esperança. Senão ela pega e morre. Tem que deixar ali no fundinho mesmo, agonizando, sem saber pra que lado da existência quer ir. Será que alguém sabe, dentro do horror todo? Um dia melhora. (Olha ela querendo ter alta, ir pra casa, brincar com os sobrinhos.) A pior sensação deve ser ficar irresgatável, porque quem tá embaixo cava, quem consegue subir, escala. Mas tem sempre o pessoal do meio, coitados. E, antidepressivos que nada, no final das contas só existem 2 pessoas capazes de salvar alguém. Depois disso, você só vai querer ficar com eles pra sempre, escreve o que eu estou dizendo.

Mas chega a madrugada, de novo. Fica tudo ali, dentro da garganta. O mundo inteiro que só quem é da gente vê. Ela é invisível, a capa de aço. Vai chegar pelo correio.

Porque, acredita, não são nada.
Nada.
Esses dramalhões cotidianos que a gente vive.
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quinta-feira, junho 09, 2005  


Só mesmo

- eba, mãe, eba, vai terminar!
- vai terminar o quê, amor?
- vai terminar, mãe! vai terminar!!
e saiu pulando pela casa.
mas parou bruscamente. voltou correndo:
- peraí. o que é isso aí, mãe?
- o quê? isso que a mamãe trouxe, dentro da sacola?
- é.
- é só o jornal de hoje, filho.
- xovê aqui.
ficou olhando um tempão as manchetes. não sabia ler ainda.
- tá escrito assim, mãe, ó: vai terminar.
deu um sorriso enorme, de dente pequeno, e pulou de novo, casa adentro.
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terça-feira, junho 07, 2005  


Pára, que isso é besteira.


: Tá bom, eu páro.
: Prometo, sim.
: Agora? Agora não.
: Hoje também não.
: Quando? Não sei quando. Quando der.
: No dia eu te aviso, não te preocupa.
: Não, assim não dói. Só dói quando eles também dóem.
: Eles, ué. Todo mundo que chega.
: É assim, por exemplo, sabe quando você tem uma febre alta e os nervos sobem até flutuarem sob a pele? Dá vontade de deitar e dormir pra ver se passa...
: Nunca sentiu? Como se os pingos do chuveiro cortassem cada poro; mas você olha e não entende, porque não tem nenhuma ferida aberta, sangue, cicatriz, nada.
: Exatamente: tudo sensível. Parece que qualquer coisa machuca.
: Pois é; é desse jeito que dói: febre com banho. Só que sem febre nem banho. A perna, coberta pela calça jeans, fica atacada por formiga que não pica.
: Não, não pica. Só fica ali mesmo, formigando.
: Acho que não sinto mais nada, não. Só isso. Aliás, sinto mais um negócio por dentro que, quanto mais os outros dóem, mais aperta.
: Onde? É mais na pálpebra, eu acho. Mas no peito também.
: Passa, depois passa.
: Quando eles ficam bons. Ou, pelo menos, quando vão pra longe.
: Não, nunca precisei tomar remédio pra passar.
: É, eu sei, não deve ser nada grave mesmo.
: Tá, vou pensar em outra coisa.
: Vou parar com isso.
: Prometo. Já disse.
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sexta-feira, maio 27, 2005  


Fim do começo


Sentia falta do jeito como a mão se afundava pordetrás do pescoço, trazendo um rosto pra perto do outro: os beijos que não terminavam, nem quando acabavam. Ficavam sempre interrompidos, atropelados por um assunto que era sempre o mesmo, que não se esgotava nem depois do silêncio oportuno que ficava no carro durante a voz do brasil. Engraçado como sempre fica alguma coisa por dizer pras pessoas de quem se gosta. Mesmo que seja alguma coisa ruim. Um dia vou te levar pra salvador e a gente nunca mais vai voltar.

Os cachorros latindo lá embaixo de tudo. Antes de cheiro virar gosto, antes de sonho virar história da carochinha; vergonha pensar naquelas coisas: hoje tão banal. Tirou a La Traviatta da cabeça. Carregou nas costas tudo o que não dava pra explicar, mas que era tão, mas tão triste. Tinha um grande intervalo entre a réplica e a tréplica, que tornava o ar irrespirável, o toque repulsivo, lembrava que o mundo era aquilo mesmo, cheio de bandidos. Queria voltar pra casa porque talvez lá ainda restasse alguma coisa que fosse lembrar onde tinha deixado o isqueiro. Não que fumasse mas é que eletricidade não tinha mais. Saía por aí, pra dirigir à noite: as lâmpadas do túnel tinham sido roubadas. De novo. Começo do fim.

A forma como cabia dentro do abraço inteiro, e alguma coisa brilhava do rosto mais do que a luz na crista da onda. As artérias pulsavam tanto que doía, mas uma dor boa; esticava os dedos pra fazer cafuné e ganhar beijos difusos, profusos, confusos.
Será que desejo virou planta que tinha que ter sido regada todo dia? Não tinha nada escrito no pacotinho onde vieram as sementes.
Talvez tenha se convencido repetindo as mesmas frases vazias.

Deixou uma mensagem que, na verdade, queria dizer: Cuida de mim. Mas, não, quanta complicação, meu deus. Ao invés disso, falou:
meu alazão morreu de sede; me esqueci dele lá, guardado dentro da gaveta que nunca mais deu tempo, vontade de abrir.
mas, sabe, ao menos guardei comigo teu coração.

Pode ser, afinal, que queria dizer muito mais assim, complicado.
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sábado, maio 14, 2005  
A lista mais relida do mundo


Sabia que seria traída tantas vezes, tanto tempo, em olhar gesto beijo cheiro conversa cheia de pontinho de luz colorida em dia frio. O vento no cabelo, os sorrisos inoportunos, as palavras (ai, as palavras) de mel das outras. Mas, ainda, não sentia nada espetando-lhe a sola dos pés (pra fora da coberta). Por isso ia pros lugares que só ela achava bonitos, mesmo quando ninguém mais acordava naquele dia, pra dirigir 60 km. Se extraviava entre as cartas que escrevia com caligrafia caprichada e as agressividades que não transbordavam a beiradinha do olho.

Um: teve um dia que, ao invés de ir trabalhar, andou no sentido contrário e pegou o bonde para santa teresa. Escolheu uma rua muito íngrime, retalhada de paralelepípedos falhados, e tirou da bolsa refinada um par de saltos ainda mais. Pensou que talvez seria hora de aprender a usá-los. Equilibrou-se a manhã inteira, a tarde inteira, tocando por dentro umas valsinhas francesas. Tentou converter polegadas em centímetros, libras em quilogramas, assim, só pra fingir. Todo minuto tem alguém fingindo alguma coisa.

Dois: fez uma lista com todos os motivos para ir embora de uma vez. Hoje ou amanhã, sem dizer nada a ninguém. Resolveu que letra de fôrma seria mais apropriada mas, quando olhou no verso, achou engraçado: tinha uma lista de feira. Apoiou o cotovelo num dos degraus azulejados pra escrever. Quando os ítens esgotaram-se, todos, colocou assim, embaixo de tudo: como é que se faz pra errar pouco, bem pouco?
Só que esqueceu o papel no bolso da calça e, mais tarde, quando entrou no mar pra lavar o calor, a água molhou as palavras, borrou as razões, e também as verduras e as frutas. Então o choro dela molhou o atlântico, que era sempre tão austero diante dos arrependimentos. Começou a achar que tudo no mundo é irreversível. Que teria que ficar presa (com tachinha, no mural de cortiça) até deletar tudo o que tinha ficado no fundo da memória. Ou pra sempre, porque sempre se lembrava de tudo. A não ser do papel no bolso da calça.

Três: tinha um casal saindo do sebo. A namorada era meio gordinha mas ele gostava dela tanto mas tanto que ficou tão feliz e ficou tão linda e virou um mito pra um monte de gente. Escreveram uma poesia, pintaram um quadro, fizeram até cinema, dizem. Será que existe alguma homenagem mais bonita que cinema?

A coisa de querer ser os outros: não conseguiu disfarçar quando foi descoberta tentando se transferir pros compartimentos alheios: deu risinho amarelo, levantou, foi embora. Tinha tanta vergonha de parecer fascinada que foi correr uma maratona na 28 de setembro, que lugar.

Encontrou com um menino lindo. Sugeriu que brincassem de marco-polo porque, na realidade, era peixinho fora d'água. O pequeno sabia a dos pintinhos venham cá, sabia a do elefantinho, sabia a da galinha choca. Sentiu-se um pouco vazia, muito boba, muito velha, por não poder ensinar-lhe novidades. Inventou uns animais com super-poderes, um marshmellow no espeto do churrasco. Costurou a noite em gargalhadas com moldura de dente de leite. Foi dormir sem inquietude.

No dia seguinte resolveu fazer compra de esmalte; saiu da loja com 7. Porque nunca tinha feito compras de nada, estabelecido a relação entre aquelas frivolidades na vitrine com o dinheiro que trazia dentro da bolsa. Comida não conta. Precisava comprar pão, remédio pra pressão e, se pudesse, os sorrisos dos pedestres: Por que será que tudo resolveu simplesmente faltar?

Podia ouvir o tilintar comemorativo dos copos de cristais através da parede de vidro de um daqueles restaurantes. E achou que, na rua, todo mundo estava tão bonito; devia de ser alguma ocasião especial.
Mas tinha medo que pensassem que ela fosse desequilibrada. Sobre os saltos, é claro. Porque, às vezes, alguém dizia uma palavra ou uma frase gozada, e ela ria. Depois percebia que ninguém mais tinha rido. Porque não fora nada; só diálogo. Mas havia dias em que até o céu se levantava engraçado. E aí tinha que aproveitar pra não ficar competindo nada: se todo mundo é pó de estrela de que adianta?

Perguntaram como ela havia aprendido a andar de saltos. Tão elegante. Sorriu e deu de ombros: tinha momentos em que não precisava mesmo de mais ninguém.
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segunda-feira, maio 09, 2005  


Chip no cérebro

- O que é que eu preciso fazer pra você acreditar que eu te amo?

- Sei lá, me implanta um marcapasso cardíaco.
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quarta-feira, maio 04, 2005  

Recuperação de vida inteiras

Sobrou aqui comigo um restinho de culpa . Me transmitiu por respirar tão alto perto de mim. Ou por me emprestar aquela toalha pra secar o rosto. O ministério não tinha proibido esse tipo de coisa? Mas não faz mal, já me acostumei a não ter mais sono e, por isso, me esquecer das tuas feições. Das de todo mundo, aliás; desde aquele dia em que você usou uma bota amarela, um sobretudo, andou de mãos abertas sobre o meio-fio enquanto contava um caso qualquer. Não sei mais prestar atenção no que as pessoas dizem.

Muita coisa na iminência de escorregar da minha boca. Dá nisso: cuidar de grávida. Ouvir batimento cárdio-fetal no silêncio dos assuntos finados. Se eu contar ninguém acredita: o sorriso grande que ela deu. Quando ouviu. Junto comigo. Tum-tá.

Não tem nada que eu precise agora. Só não mente pra mim. Que eu sei que ela vai morrer. Vê, já começou. Responde só com voz, presença só com corpo. Assim não vale à pena. Vir até aqui pra entender o que é degradação. Porque despedida me consome: me recuso. Pois então, de que serve? Abrir mão de tudo pra estar aqui.

Ser magistral. Orquestrar os sonhos dos outros sem que percebam a manipulação. Sem que acordem no meio da noite querendo mudar de posição pra mandar embora o pesadelo. Irrigar os micrômetros do solo onde a chuva rompeu com a gravitação universal. Onde existe tanta violência debaixo das costelas, a maioria delas proeminente. Chegam todos os dias com um novelo de problema. Tudo acumulado, resultando em uma modalidade não documentada de dor. Um ineditismo de anormalidades. As filas, as faltas, os erros: tudo nos olhos. Culpa de quem mesmo? Não me lembro. Nessa terra de gente humilde (que vontade de chorar), amnésia é dádiva.

Levar pra casa a tal da ética atravessada de um lado ao outro do tórax. Um projétil-de-arma-de-fogo, esse negócio de não denunciar absurdos em nome de uma delicadeza tão relativa, tão abstrata. Ser condescendente com tudo aquilo. Ficar incandescente, isso sim. Perder a fome. Querer dizer assim: é foda. Pra todo mundo que passar. E, se perguntarem o quê: tudo. Tudo é.
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quinta-feira, abril 28, 2005  


Então, por favor,


Atraso. Mas meu relógio tinha enguiçado, parecia; tinha que ficar olhando as horas naqueles painéis de rua. Ou no visor do celular. Às vezes até no punho das outras pessoas, de relance, naquela discrição-inconveniente

O problema é que era um dia tão sozinho. E queria conversar sobre, não sei, futebol.

Entrei no ônibus procurando uma fisionomia mais ou menos familiar. Nada. Nem o moço, sempre o mesmo, que costumava se oferecer pra segurar minha mochila. Nem estava pesada. Mas eu tinha um medo danado de o estetoscópio partir. Escutar coração quebrado. Entrou um rapaz com uma pasta comprida. Algum trabalho lá dentro gritava assim "alguma coisa-design!" Pensei que talvez fosse alguém que eu (re)conhecesse. Mas não. Entrou um executivo com fone no ouvido. Fiquei achando bacana ouvir a distorção da música dos outros. Nem deu vontade de sentir saudades da minha. Escutei só as sílabas que faltavam pra arredondar a métrica. (Nunca consegui rimar tisne com cisne.) Tinha uma menina rosa, sentada, rosa sapato, rosa bolsa, rosa carteira. Acho que nunca tive alguma coisa assim, que fosse muito rosa. Mas me deu um desejo enorme de voltar pra casa, e descobrir se alguém tinha feito geléia de goiaba pra eu passar no croissant. Tem umas coisas que a gente só come quando é pequena. Depois, não sei. Parece que engorda.

Entrou um moço branco também, dos cabelos às barras da calça. Fui até ele perguntar se estetoscópio quebrava assim, sem mais nem menos. Reparei que ninguém cedeu o lugar pra que ele sentasse. Então achei melhor não apurrinhá-lo com bobagem. Me disseram que cidade grande é assim mesmo.

Queria uma superação. Não exatamente uma superação. Um exagero tampouco. Queria que tivesse uma palavra pra super-reações. Que nem em inglês.

De repente senti falta dos teus comentários meio cretinos. Por exemplo, eu. "Eu detesto quando as propagandas vêm com os verbos no imperativo. Detesto. Mas eu gosto de uma boa frase de efeito (quanta bobeira). Mas, enfim, qual é a diferença entre um slogan e um argumento?"
Sabe? Esse tipo de coisa que eu queria conversar. Além de futebol, é claro.

Foi quando começou a chover torrencialmente. Fui lá pra trás assistir todo mundo que saía do ônibus abrir o guarda-chuva muito afobadamente. Não era maldade. Ou era? Não era. Porque a minha vez estava chegando. Fiquei ensaiando tudo o que eu faria o resto do dia inteiro pra não perder o guarda-chuva. Que era do meu pai. Que tinha me levado numa sala quente e úmida na noite anterior. Que construíram agora há pouco, no meu prédio. E a melhor coisa é sauna, depois chuveiro gelado, depois sopa, depois banho frio. Depois abrir a janela pro vento e ficar sob as cobertas pro sono. Queria dizer pro rapaz designer: nossa, ontem morri de choque térmico. Mas ele tinha saltado já. Bem antes do que imaginei.

Não tem importância, penso em outra coisa. Olho o mar todo furado de chuva. As pessoas continuam correndo na ciclovia, uma meia-dúzia de gatos encharcados fica em baixo da pontinha da tenda dos quiosques. Todos com cara de espera. Só fui conseguir um lugar pra sentar no final de copacabana. E deu pra colocar uma música pra tocar. De dentro da mochila diretamente até os ouvidos. Assim não ia molhar.

Quando saltei, eu, o estetoscópio e o guarda-chuva do meu pai, descobri uma coisa importante: a tangerina tá na época. Fiquei lembrando do dia em que a gente comprou umas 8 ali, naquela feira mesmo, e ficou sem barriga pra almoçar. Ou com barriga demais.

Acho que o mundo é dividido entre as coisas que eu sempre quis e as coisas que eu ainda não sei que quero. Eu sempre quis dizer tudo de uma vez só.

Mas deixa, que eu dia eu conto. A tal história da minha vida.
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sábado, abril 16, 2005  


Irmãs

- Vou cobrar taxa, hein, pelo uso das minhas coisas de papelaria
- Que vai pela areia?
- É, de papelaria
- Ah, de papelaria!
- Ué. Grampeador e papel não são coisas de papelaria?
- São, sim. É que entendi que vai pela areia.
Achei engraçado.
Ela riu também.
- Você vai no show?
- Não e sim.
Olhei pra ela com cara de pergunta.
- É complicado, não dá pra explicar.
- Tá bom então.
- Você vai?
- Eu não. Tenho que estudar.
- É, eu também.
- Se você tem que estudar, então não deve ir, né?
- É.
Fiz outra cara de pergunta. Mas entender, não. Desisti. Ela olhou pros pequenos ovinhos que tinham sobrado. Só tinham sobrado dois, com recheio de coco.
- Troca um de recheio de coco por um de recheio de nutela?
- Hum. Ta.
- Não gosto dos com recheio de nutela.
- Não gosto dos com recheio de coco.
- Vai sair mais tarde?
- Acho que vou.
- Ué. Não tinha que estudar?
- É, mas vou só no cinema.
- Ah, ta.
Foi ela quem fez cara de pergunta. E foi embora, com seu papel grampeado.
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segunda-feira, janeiro 31, 2005  

Sobre o contínuo esquecimento dos contornos borrados

Aquela vez escrevi assim:
"hoje perdi capacidade distingüir normal patológico." Entreguei à moça do correio e torci pra você me desculpar a mediocridade. Eu só tinha grana pra 6 palavras. Não dormia há 3 dias, tinha 340 páginas pra ler. Em 24 horas. Merda de vida.

Mas nunca deixei de ter domínio sobre aquelas constatações bonitas que eu fazia de madrugada e projetava no teto, em cima da nossa cama.
Te espiava dormindo. Eu, dormindo. Te espiava. Dormindo também.
Depois era a sua vez.

Queria ser mais empreendedora das minhas vontades. Você quase perdeu o controle todo quando eu disse isso. Fiquei até com medo, um tico. Mas foi sutil, fingiu não dar muita importância praquele drama todo. Achei bonito. Espremeu tudo dentro. Quase tudo.

Depois chegou na janela. Ficou em pé no parapeito. Tomou impulso e tentou cair. Mas não conseguiu de novo. Voou pra longe, bem longe.
Corri até a janela pra te ver, olhar pra você me olhando lá do alto. Tentei me lembrar daquela poesia pra te gritar, aquela que você me disse que gostaria de ouvir de baixo pra cima. Porcaria de memória. Não veio. Fiquei com raiva, cerrei os punhos.

O vento te soprou pralém do meu alcance visual. Você sempre quis saber onde terminava o azul todo; e se as nuvens eram mesmo frias como eu tinha dito. Mas não havia nuvens nesse dia. Havia aviões aos montes. Daqueles que passam na praia com faixas propagandistas. Achei que de repente você pudesse pegar uma carona de volta.

Pus o Coltrane pra tocar e fui fazer comida. Quis que você estivesse por perto com o alho dourando. Te ouvir falar que aquele cheiro te dava fome. Que a gente come pelo nariz. Me perguntar por que é que eu nunca choro quando corto cebola. E depois me atazanar com as proporções das fôrmas, a diferença entre o mel e o melado, me perguntar se eu já encontrei a tal da araruta. Eu só queria saber por que os bolos solam. Sempre termino dizendo uma coisa dessas, e a gente lava a louça junta.

Na verdade, quanta coisa eu já falei que, teoricamente, não interessava. Estavam pensando que eu me sentia sozinha por causa daquela maluquice que eu inventei: que cada ser humano tem que abraçar outros 10 por dia pra não ter câncer. Talvez isso interessasse. Mas eu não tinha dinheiro pra escrever sobre o que estavam pensando de mim. Porque a gente tinha combinado que sempre que não tivesse tempo ia falar que não tinha dinheiro. Fiquei um monte de anos achando aquilo a coisa mais engraçada do mundo.

Mas então. Tinha um pessoal preocupado comigo, e o que eu achava? Eu não achava nada. Não tinha dinheiro pra ficar pensando nessas bobagens. Tinha que pensar como eu ia fazer pra ir do centro até em casa em 10 minutos, pra poder tomar um banho, dar a comida do cachorro e pegar o carregador do celular. Tinha mais umas 20 coisas que acabei tirando da lista. Pensei que era melhor não me iludir.

Você entrou pela porta um pouco antes do almoço ficar pronto. Perguntou se eu já tinha recordado a poesia. Eu tinha desistido, pedi pra você me contar. Debochou, disse que a minha memória não era mais a mesma. Implorei pra você contar. Não quis. Deitou no tapete e ficou rindo. Eu disse que não estava achando a menor graça. Mas até que estava. Falei pra você sair daquele chão empoeirado e tomar um banho, pra gente poder almoçar. Veio me beijar e foi lá pra dentro, cantarolando o jazz que eu tinha posto pra me fazer companhia.

Outro dia sonhei que li no jornal que tinham encontrado a pessoa mais repugnante do país. Logo abaixo tinha uma foto minha, e uma entrevista completa, que eu não me lembrava de ter concedido. Umas coisas que era bem capaz mesmo de eu ter falado. Fui até a cômoda no escritório pegar uma tesoura pra recortar a matéria. Pra te mandar junto com o próximo telegrama. Mas quando voltei não estava mais lá. Era outra pessoa, outro assunto. Acordei com uma sede danada e pela primeira vez me arrependi de nunca ter dormido com um copo d’água do lado. Agora imagina como eu teria ficado pobre se tivesse te escrito essa besteira.

Anjo. Dia desses teve a maior ressaca. Você teria gostado de ver. Sabe o que eu descobri. Que tem tanta gente nessa vida que eu já amo e que ainda nem conheci. Tenho me declarado pruns estranhos que me vendem coisas, me dão informações, me tratam bem. Me sinto contente. Uma calma absurda dentro de tanto caos. Não tenho tido pressa. Nem aquelas dores de cabeça.

Da próxima vez que a gente se vir vou te cantar uma música do Caetano. Só porque você sempre achou que eu detestava tudo o que ele fazia. Bem. Nem tudo. Nem sempre.

E também, né, tem coisas que mudam.
   posted by Fernanda at 2:09 AM (imagens)

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quinta-feira, janeiro 20, 2005  

Porque sim

Apaguei um post.
Tinha muito nele.
   posted by Fernanda at 1:27 AM (imagens)

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sexta-feira, dezembro 31, 2004  
Calendário

Nem mesmo as asas de vidro
Blindado
Da ave que nos dava carona
Dão conta do peso, do fardo
Que hoje de manhã ela
Começou a carregar

Perguntei tantas vezes o nome dela
Tirei-a pra dançar em todas as festas
Só pra sentir mais uma vez aquele perfume
O único que eu gostei até hoje
Só pra ouvir a sonoridade de todas aquelas letras juntas
Porque era diferente
Quando ela dizia

Os nossos pés na areia branca tentando ver
Alcançar
O balão vermelho
Desaparecendo no céu
Apertei a mão dela forte
Tive medo que ela chorasse

Pois nunca sei o que fazer
Quando elas choram na minha frente

Outro dia
De madrugada
No banco da praia
Um homem de terno lia o jornal

Talvez não haja sentido
Ler jornal de madrugada
Na praia de terno

Mas há pessoas vivendo momentos inexplicáveis
Extraordinários
Todo o tempo

E o mundo era mesmo só isso
Até que ela me acordou, às duas da manhã,
E falou no meu ouvido:
Eu nunca gosto do jeito que as coisas terminam
   posted by Fernanda at 1:41 AM (imagens)

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sexta-feira, novembro 26, 2004  

Negações


Estão me congelando, tenho a impressão. Perguntaram por que é que eu me contesto desse jeito. Não há resposta alguma a altura de meu silêncio altruísta. Me calo pra não gerar culpas insípidas, só por isso. Mas não entendem, não precisam entender. Não se importam mais.

Não durmo há tanto tempo, não tenho mais contado histórias sobre os chorinhos que eu andava ouvindo. Não sei mais que cor vai com que dia, que música vai com que mar. Os pares despareados. Pares que nunca o foram. Será que a gente força todas as coisas belas?

Desaprendi.

Não consigo mais ouvir o que os outros dizem sobre mim. Mesmo que eles gritem o som se tornou tão tóxico que me deixou cambaleante, tudo roda roda roda, não consigo mais me levantar daqui. Chorar e gritar algum nome: pedir ajuda. Pra arrumar essa merda toda. Que ficou desde o momento em que eu fechei os olhos. Até agora.

Não existe: a única coisa que tenho vontade de comer. Do outro lado do mundo, numa daquelas ilhazinhas do pacífico. Onde eu vou estar sempre. Sozinha. Com gente que eu não conheço bem, mas que me faz tão viva. Até hoje, quando tenho a sensação de que tudo não passou de uma invenção, escrevo pra eles. E me lembro como se faz pra não compreender. Por que esperam coisas que ninguém prometeu.

Eles nunca responderam.

Comprei uns envelopes bem bonitos pra transportar a minha vida pra longe. Mas não sei se consigo.
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quinta-feira, novembro 18, 2004  

Aquelas lágrimas doídas no banco da praça

Está acima da questão de ser ou não um tabu. Porque um dia chega o dia em que você não quer estar lá para ver. Por enquanto, nebulosidade. As palavras ficam retidas num soluço-engasgo seco. Seco. Um deserto. Entre duas bocas. Você sempre baixa os olhos nessas horas. Logo você que sempre gostou de brincar (com fogo) de “se”. De ser. Cansou do lado lúdico de adivinhar onde ficam as constelações que vão te trazer as respostas. E eu já te surpreendi, repreendi. Você raramente exagera, mas acho que bebeu um pouco demais. Você diz que pode, dessa vez. E eu tenho a impressão de já ter ouvido isso antes. Você dança sozinha, taça na mão, salto agulha no pé. E eu nunca te vi assim: de salto agulha. Tão linda. O salto quebra e você nem percebe. Você desliza na varanda, olhos fechados, ao som da sinfonia que você sabe de cor, e que escutamos juntos naquele dia, no teatro reluzente. Foram tantos os silêncios que a gente compartilhou nessa vida curta; os concertos foram os meus preferidos. Você se vira de súbito e me pergunta como se diz qualquer coisa em outra língua. Eu respondo. E você repete. E repete. E repete. Dança. Deixa cair o copo. É mais leve do que ele. Chega ao meu ouvido e me diz: “Pode ser que eu seja tudo.”

Talvez eu nunca venha mesmo a compreender essa dor retrógrada que você sente. Talvez você também não. Joga em mim uns olhos castanhos cheios de diálogos inverossímeis. Te conheço do avesso, mas sei pouco sobre você. Que é tão sensorial, vive tudo em sinestesias. Chora em metáforas. Sem demais explicações. É força e luz durante 30 anos mas escolhe um dia pra despejar fantasmas. Se decompõe dentro do que permanece obscuro. Eu nunca soube usar uma panela de pressão. E de repente enxerguei que você era uma. Foi quando aprendi a desarticular as palavras, gestos, contextos.

Você me racha ao meio. Toda vez que chora escondido, que escreve às minhas custas, que me conta sonhos decifráveis.

A verdade é que eu não tenho certeza se quero ouvir. O que você (não) tem pra me dizer. Ao invés, te assisto patinar nos azulejos enluarados. Pode ser que a música mude às vezes; não, muda. Muda muito. O tempo inteiro. Eu é que permaneço ali, estático, pra que nada se sobreponha. Não perder no ar os teus contornos.

Você importa muito. E é por isso que eu.
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quinta-feira, novembro 11, 2004  


Ultra-som

tenho vontade:
te ver por dentro:
ser radiologista.
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segunda-feira, novembro 01, 2004  


Casco

Não serve pra muita coisa. Essa é a verdade. Me disseram que é doído dizer essas coisas assim, sem uma preparação. É que detesto os atenuantes. Me deixam nervosa. Então engulo todas as porcarias do mundo. Só porque fiquei falando sem parar quando os outros queriam dormir. No dia seguinte estavam todos ácidos comigo. Eu nem me lembrava mais por quê.

É. Caminho a passos largos praquela conclusão de que não há mais motivo. Sempre descubro as minhas idéias originais escorridas das bocas dos outros. A minha tridimensionalidade toda liquefeita num beco sujo, no lixo hospitalar. (Se ele não chegar depressa é capaz de eu gritar aqui mesmo.) Vem uma sede imperativa que não passa nunca. Bebi 5 litros de água em um dia. Admitir o fracasso é primeiro passo. Pra quê?

(Será que só a vida dos outros é medíocre?)

Me intoxico de camadas intransponíveis de açúcar espesso. Dentro de mim fica tudo mascavo. Transpiro grão por grão enquanto escuto absurdos por aí. Coisas que eu devia fazer pra me tornar acessível. Pra quem? Mais pra mim do que para qualquer outro ser que eu ame enlouquecidamente. Esfarelar os meus ossos e dentes toda vez que eu ficar nervosa. Dirigir a palavra apenas a quem não me recrimina. Distribuir sorrisos a qualquer um que me olhe nos olhos. Pela coragem, pela audácia. Tenho uma atração magnética por gente ousada. Provavelmente porque também sou a boazinha da história toda. E culpa é um sentimento recorrente. Mas acredito que ainda sirva pra alguma coisa. Certamente não pra virar protagonista de romance, tema de peça, modelo de escultura. Alguma coisa nobre. Sem arte, sem graça. Mas com um propósito, uma consciência de pluma.

Devia anotar mais o que me faz boicotar as próprias dívidas. Esmiuçar as vontades. Uma vontade nunca é só uma vontade. Querer tem sempre várias vertentes. Desdobramentos. A gente é que tem preguiça de encontrar. Às vezes as vontades erradas prevalescem. E sai tudo errado. Mas é assim mesmo, a vida.

Precisa de senha?
Minha força azedou. Vou ter que pôr fora. Amanhã compro mais.
Mas já falo isso há umas três semanas.

Preciso me livrar daquele ambiente onde todo mundo se hipnotiza pelo espelho em frente. Tenho medo de começar a achar normal.
   posted by Fernanda at 12:34 AM (imagens)

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terça-feira, setembro 21, 2004  

Desarticulação

Antes eu soubesse como se faz para ser holográfica. Porque as imagens dependem de tantas variáveis que ainda não descobri. E já está tarde pra sair à procura delas; então me boicoto esquecendo a minha fala, a minha deixa. Por que será que ninguém te deixa quando você quer se desperceber? Distrair-se das próprias projeções. Algumas horas de focos luminosos sob a testa e de improvisos sobre todos os assuntos indesejáveis. Para depois regurgitar o desejo de ser volátil. Xingar, gritar, descascar-se em insultos. Mentalmente. Perturbação e melancolia. Ciclo inevitável?

Um caldeirão de sombras em devaneio. Eu revestida de luz e trilhas. Primeira vez: fato. Se eu assinar em baixo, minha caligrafia termina tremida, um pouco inconstante, minha assinatura não tem a menor graça, e eu nunca soube desenhar um F bonito. Mas, se for imprescindível, assino. Um dia ainda paro de ver tudo como sendo a coisa mais importante. Compro uma caneta iluminadora, ao invés de cinco. Porque gasto tanto.

O problema de ser tão angular pode mesmo ser esse: ter tantos vértices. Aliás, por que guardar tudo isso que a gente não usa? Meu respeito por tanta gente de repente venceu. O receituário de cinqüenta anos atrás também já não serve mais. Chego em casa concordando comigo. Você sabe o quanto me custa. Você é testemunha das minhas tentativas. Todas uma frustração só. Mas vou continuar tentando. Porque sou boba. E indigna de tanta arrogância. Você, no fundo, me acha arrogante.

E eu. Eu, se tivesse coragem, te dizia assim: não tente fazer com que eles te pensem desinteressante. Tente fazer com que eles te detestem. Porque aí, talvez, você consiga. Porque ninguém mais te compreende. Mas acho que estou começando a.

(Puxa, sou mesmo arrogante.)

Acabo me surpreendendo querendo que você esteja comigo, esperando a madrugada passar. Esquecer, afinal. O dia fica todo em islandês. A Björk às vezes canta essas coisas lindas que eu não entendo. Você me diz coisas que estão além das fronteiras da minha percepção sensorial. Que me fazem chorar como último recurso.

Geralmente a vida vai. Por alguns dias ela é. Mas hoje tudo voltou ao normal.

Só que não vou te falar disso. Acho que te digo muito. E te escrevo quase nada.
   posted by Fernanda at 3:37 PM (imagens)

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sábado, setembro 18, 2004  


Não

Eu não quero e pronto. Diz pra eles pararem de me forçar. Por favor.
   posted by Fernanda at 2:45 AM (imagens)

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segunda-feira, setembro 13, 2004  

Ausências impermeáveis

As pedrinhas do rio já não eram mais aquelas que, em idos tempos, se acumulavam às toneladas nas margens, no fundo, na terra ao redor. E ganhavam mais vida do que a própria correnteza. Que era forte e incisiva e derradeira. E me levou embora tantas vezes. Mas só quando eu quis. A não ser em uma ou duas ocasiões em que me distraí ouvindo as casualidades alheias. Eu disse que eu queria comprar um cordão daqueles de contas redondas. Tudo começou mais ou menos assim. Mas nem sempre os diálogos começam. Nem sempre alguma coisa remete à linguagem e o corpo se sente limpo e a boca se lava de verdades tenras. Nem sempre.

Tenho esse vício de roubar as frases, as fases dos outros. O que é imperceptível às minhas tentativas, às minhas execuções. Mas que certamente enfraquece todas as minhas intenções. Os impulsos seqüestrados de gente que enxerga melhor que eu (que não tenho um pingo de grau, nem de bom senso, nem de vergonha na cara). Me falta tanto. Sobretudo o controle daquilo que eu escrevo falo sinto penso vivo bebo. No final, tudo sai às minhas custas. A raiva de uns, a gasolina de outros. Uma imundice. Tanto que sempre vou me deitar passando mal.

Agora ontem à noite. Entrelaçados, os lábios colados, impublicidades embrulhadas entre as abstrações sussurradas (detesto essa palavra) e você me perguntando as horas. De repente foi por isso que te escolhi. Testar todas as temperaturas das cores que eu visto, tenho, sou. Fechar os olhos: é esse o objetivo de toda entrega, não? Te permitir explorar todo esse museu que eu tenho por dentro. Me despir vestindo tudo de um resumo das coincidências que eu pensei. E depois querer gravar as suas réplicas. Fazer um documentário sobre aquilo tudo. Te dizer que você vai fazer a capa do meu livro. Que eu não pretendo escrever. Porque nunca consigo a luz certa, o ângulo irresistível, aquelas imagens escandalosamente belas. As matizes certas(, porque eu gosto dessa palavra no feminino). Tenho vergonha das minhas fotografias. Mas, mesmo assim, precisava de uma lente macro pra conseguir reproduzir a sintaxe das pessoas. As raízes de toda aquela dor, e de onde vem esse cultivo pelo sombrio. A busca pelo o que é obtuso. Tanta gente triste, quimicamente triste, culturalmente triste. Os por quês. Que estão sempre faltando. Lacunas.

E chegar à feira, pensando em todas as coisas indizíveis, e dizer:
- Moço, me vê um contexto, por favor?
   posted by Fernanda at 12:57 AM (imagens)

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sexta-feira, setembro 10, 2004  


Ela colocou na minha frente um prato cheio de pedacinhos de bolo. Eu não podia. Mas aceitei.

- Será que isso tudo o que a gente está passando é realmente necessário?
- Em outros tempos eu te diria que sim. Hoje não sei mais.
- Eu também não sei mais. Não sei mais até que ponto toda decepção é aprendizado.
- Talvez não seja. Talvez nunca tenha sido.
- Então essa história de amadurecimento seria só uma justificativa inventada?
- É. Uma desculpa pra inviabilizar a nossa ira fundamentada em uma colcha de retalhos de coisas pequeninas.
- Mas são justamente os detalhes que te fazem amar ou odiar.
- Sim, é verdade. E também são eles que sedimentam a indiferença.
- Sabe... eu nunca pensei que a indiferença me fosse um troço tão palpável.
- Indiferença é pesado. Eu não posso dizer que sou indiferente a alguma coisa. Ou a alguém.
- A pior coisa é justamente isso: a consciência de ser indiferente.
- Em relação a ele?
- É claro. A quem mais?
- Eu queria inventar um rastreador de indiferenças.
- Há, essa é boa. Mas será que ele teria utilidade prática?
- Pelo menos a gente saberia quem é que se importa.
- Quem é que se importa se a gente for atropelada por uma van desesperada.
- Exatamente. E só aí seria possível saber em quem confiar.
- Amiga?
- O quê?
- Eu acho que não ia sobrar muita gente.
- Eu sei. É por isso que não inventaram até hoje.
   posted by Fernanda at 9:30 PM (imagens)

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